Por Jairo Hidal
Desde 7 de Outubro de 2023, quando ocorreu o ataque do Hamas em Israel, eu me afastei de grupos de WhatsApp e assemelhados (eu nem tenho mídias sociais). Me retrair e ficar em silencio é a forma como eu me comporto quando estou magoado (isto tem sido assunto da minha terapia). Eu ocasionalmente visito os grupos de WhatsApp, sem prestar muita atenção ao que vem sendo postado. Sem nenhum juízo estas coisas perderam muito de sua graça (este meu “afastamento” ocorre em outras dimensões, como o Corinthians e tantas outras coisas). Uma descrição do que eu sinto seria: LUTO, uma sensação de perda de algo que não vou ter de novo.
O que foi que eu perdi? A inocência.
1) A inocência de acreditar que barbáries deste tipo pertenciam a um passado, num mundo sem regras civilizatórias que a razão e o iluminismo nos brindaram
2) A inocência de acreditar que a perseguição e destruição de judeus, por serem judeus, cabiam apenas nos livros de história (não tão distante, pois meus avós vieram para o Brasil devido aos Pogroms na Rússia Tsarista e conheci muitas pessoas que foram sobreviventes dos campos de extermínio Nazistas).
3) Ver as entidades judaicas da cidade em que moro, e os judeus tendo de tomar precauções extras no seu cotidiano para se precaverem de um infortúnio maior.
Sempre vale a pena relembrar que na vizinha Argentina houve dois grandes atentados, realizados pelo Hezbollah, contra instiuições ligadas a Israel (Embaixada em Buenos Aires, em 1992) e aos judeus (AMIA, uma associação de ajuda e apoio a comunidade, em 1994. Este foi o maior ataque terrorista na Argentina).
Até hoje não se concluiu a investigação. Em parte, devido a estes atentados se estimam que mais de 1/3 dos judeus argentinos (que já foi a maior comunidade judaica da américa Latina, tenha deixado seu país. A hipótese principal destes atentados seria pelo não cumprimento pela Argentina de um acordo feito pelo ex-presidente Menem com o Governo dos Aiatolas do Irã sobre transferência de tecnologia nuclear;
Este ano, por exemplo, para entrar na sinagoga em que meu Bisavô, meus Avós, meus Pais, eu e meus Filhos e até minha Neta, tivemos de passar por um sistema de segurança imenso, do tipo de aeroportos;
4) A revelação de que o antissemitismo, que eu também acreditava ser algo de um passado remoto, existe, está forte e cresce. Eventualmente quem não é da tribo não entenda que a existência de Israel (portanto o movimento sionista) é inalienável da identidade judaica. Há mais de 2 mil anos judeus rezam: “Le Shana Haba Bi Yerushalaim” (no ano que vem em Jerusalém).
5) A hipocrisia de uma enormidade de pessoas que desejam o fim do Estado de Israel, mas usam no seu cotidiano invenções deste país. Apenas para citar algumas:
a. Waze
b. Boa parte da tecnologia que vai nos fones celulares
c. USB Pendrive
d. Copaxone: medicamento para Esclerose Múltipla
e. Apesar dos judeus construírem menos de 0,2% da população mundial, 22% (216) dos Prêmios Nobel foram recebidos por judeus
6) Inimaginável para mim os movimentos estudantis que ocorreram nas principais Universidades Americanas (em especial Columbia, onde meus dois filhos e nora estudaram)
7) A minha sensação pessoal de estar sozinho nesta jornada é algo desalentador. É como se houvesse um mismatch (desencontro) emocional. O mundo está em uma certa vibe e eu em outra. (O NY Times de 22/12/24 tem um interessante artigo sobre isso: “It Can Be Lonely to Have a Middle-of-the Road Opinion on the Middle East”).
Porque o título deste texto se chamar “444 dias”? Pois bem, vocês devem se lembrar que, em 1979, logo após a Revolução Islâmica, que tomou poder no Irã, houve uma invasão da Embaixada Americana (nas regras da diplomacia isto é um ataque a um outro país) em Teerã, 59 diplomatas foram feitos reféns e foram libertados (adivinhem) 444 dias após. Pois bem esta semana se completaram 444 dias que os sequestrados pelo Hamas estão retidos contra a sua vontade. Apenas como um exercício de memória vamos comparar a situação vivenciada por ambos grupos e reféns:
Número de mortos americanos: nenhum. Mortos israelenses: 1.251
Assédio sexual de americanos reféns: nenhum. Assédio sexual de israelenses reféns: 73.
Estupro de americanos: Nenhum. Estupro de israelenses: vários.
Após 1 mês a ONU condenou as ações do Iran. Até hoje, a ONU não condenou as ações do Hamas.
Há um artigo recente em uma revista de psicologia que expuseram o seguinte experimento:
1) Um grupo de voluntários foi aleatoriamente alocado em 2 grupos;
2) Um dos grupos recebeu 100% das informações sobre um determinado assunto;
3) O outro grupo recebeu 50% das informações, mas foram induzidos a acreditar que tinham todas as informações;
4) Os dois grupos foram colocados em um debate;
5) O grupo que tenha 50% defendia suas posições com a mesma veemência que o outro grupo. Assim somos nós no cotidiano. Seguramente, em nenhum assunto, nenhum de nós tem conhecimento de todas as perspectivas, mas tomamos posições e as defendemos com a certeza de que estamos com a verdade (como nas Universidades Católicas e Protestantes, declarando que são defensores das “Verdadeira Fé”, ou o relato de um dos meus mais queridos amigos que tinha uma avó Católica fervorosa e ou Protestante também muito religiosa. Uma chamava a outra de “Herege” e a outra de “Papista”).
Sem ser científico, eu tenho uma sensação de que exista um Gene para o Fanatismo (ou Dogmatismo), e ele parece se manifestar em alguns campos do conhecimento, como:
Economia: coloque para conversar um economista da PUC do RJ e outro da Unicamp
Futebol: Mesmo com o VAR os fanáticos de cada time têm visão imutável de jogadas dúbias
Vacinas: Hoje em dia, pergunto a um paciente em primeira consulta quantas doses de vacina de Covid ele tomou. Se foram 1 ou 2 já fica claro, sua afiliação política e muitas outras coisas
Religião: Creio que nem preciso detalhar
Política: Lulistas e Bolsonaristas
Israel e a questão Palestina: quando alguém tem este tipo de manifestação, em geral não tem permeabilidade a argumentos que não reafirmem seu pensamento, mas “compram”, sem críticas maiores, ideias que reafirmem seu posicionamento Eu me esforço a ler textos produzidos por pessoas que se opõem a posição de Israel (e alguns defendem a eliminação do Estado de Israel, se referindo a esta região como “Palestina Ocupada” e ao Governo de Israel, como “Entidade Sionista”. É como se referem a Valdemort da saga de Harry Poter, “a name who cannot even be spoken”).
As narrativas Bíblicas têm sido reescritas, para produzir uma nova História (melhor seria Estória), por exemplo: Jesus não é mais Judeu e sim Palestino. Não acreditam? Vejam a foto recente do Papa Francisco visitando o Presépio no Vaticano, onde Jesus está na manjedoura envolto por uma Keffiyeh, ou o Cardeal Filipino Pablo Virgílio David, que, em um sermão de ontem (24/12/24) teria declarado que se o nascimento de Jesus fosse hoje, ele ocorreria em Gaza.
Leio jornais árabes (uso o Google Tradutor), russos e de outros países, tentando ser pluralista, usando da razão e da sensação de ser um dos últimos Iluministas deste mundo, mas no final eu continuo sendo um Judeu (muito mais cultural e menos religioso) que tem a sensação de que, em breve, terei de viver em um Gueto, com suas agruras e restrições.
Por coincidência ontem (24/12) à noite será celebrado, além do Natal (só para verem como eu tento ser pluralista, minha família, com amigos muito queridos, em 2006 assistiram a Missa do Galo, na Igreja da Natividade, em Belém, na Cisjordânia), há a celebração de Chanuka (o calendário Gregoriano é Solar e o Judaico Lunar e tem ciclos diferentes).
Os eventos desta festividade estão descritos nos livros bíblicos 1 Macabeus e 2 Macabeus (que estão no Novo Testamento Católico e Ortodoxo, mas não está no Velho Testamento nem na Bíblia Protestante). O episódio narrado ocorre em 164 AC. Após a morte de Alexandre, o Grande, seu império foi dividido entre seus generais, por exemplo: Ptolomeu ficou com o Egito e Selêucida com a região que hoje seria a Síria, Líbano e Israel. Impuseram uma cultura helenística e tentaram colocar estatuas de deuses Gregos no Templo (inaceitável para um povo monoteísta). Uma enorme revolta ocorre, liderada por Judas, o Macabeu. Quase inacreditavelmente os judeus ganharam e expulsaram os Gregos. O templo que havia sido conspurcado, precisava ser purificado e rededicado. Isto levou 8 dias e Chanuka é celebrada e é comemorada em 8 dias.
Um candelabro (chamado Menorah) de 8 braços é usado e no primeiro dia se acende uma vela, no segundo dia 2 velas (e assim sucessivamente).
Em alguns grupos judaicos há um hábito de se fazer um pedido para cada dia desta celebração. Os meus seriam:
1) Que os reféns de Gaza sejam liberados com urgência;
2) Que Palestinos (muçulmanos) e israelenses (judeus) encontrem um modo harmônico de viverem lado a lado;
3) Que Palestinos e outros povos em sofrimento venham a ter uma vida digna, podendo prosperar e criar seus filhos;
4) Que tantos outros conflitos (Ucrânia, Sudão, Síria etc.) sejam resolvidos (e que novos não surjam)
5) Que a Tolerância prevaleça sobre o Fanatismo (meu terapeuta vai dizer: lá vem você de novo com seu Iluminismo irritante. Você sabe que a consequência deste movimento foi o “Terror” da Revolução Francesa?). Lembro-me de Maria Betânia em uma música - que se bem me lembro é de autoria de seu irmão Caetano -, declama uma poesia de Jacob Levy Moreno (um dos pais do Psicodrama e da Terapia em Grupo) que diz: Eu arrancarei teus olhos e os colocarei no lugar dos meus/ E tu arrancaras os meus olhos e os colocarás no lugar dos teus/ Então eu te olharei com os teus olhos e tu me olharas com os meus;
6) Que este ressurgimento de antissemitismo (mais uma vez coloco que na perspectiva judaica, antissionismo e antissemitismo são a mesma coisa) desapareça para sempre e que os judeus possam voltar a se sentir seguros.
7) Que as ações nefastas (na minha percepção) do atual governo sejam contidas e que este regime não consiga produzir artefatos nucleares;
8) Como pediu John Lennon em uma de suas canções:” Give Peace a Chance”.
Outra história da qual sempre me lembro é a do segundo templo de Jerusalém, que foi destruído pelos Romanos, liderados por Tito, no ano 70 DC (que depois veio a ser Imperador de Roma) e além disto também saqueou este recinto Sagrado. No arco de Tito em Roma, há um alto-relevo mostrando este saque e é um lugar que quando posso sempre visito. Uma vez, a neta de um de meus melhores amigos, pergunta ao seu avô por que o Jairo aprecia ver a imagem da destruição de algo que lhe é tão precioso? Minha resposta: vocês conhecem algum outro povo, que tenha sido expulso de sua terra há 2.000 anos, e que tenha um registro talhado em pedra, feito pelo conquistador, da legitimidade de sua busca de retorno a sua terra ancestral.
Por isso, vejam como este povo Judeu é perseverante:
1) Chanuka celebra a recuperação do Templo, que havia sido maculado pelos Selêucidas;
2) Cerca de 250 após, os Romanos destroem o Templo e a cidade de Jerusalém, e a denominam de Aelia Capitolina;
3) Os Judeus, agora expulsos de sua terra natal, na qual viveram por mais de 1500 anos poderiam compreensivamente abandonar esta celebração, pois o Templo não mais existia.
Portanto, na compreensão judaica, o “milagre” de Chanuka, ocorreu e merece ser celebrado. Mesmo que o Templo não exista mais.
Dr. Jairo Hidal é médico.
Querido Jairo, bom ver você aqui no NEIM. Muito bom o teu texto, ainda que triste. Mas se há um lugar onde minha esperança foi renovada é justamente aqui. Dezenas de leitores não judeus têm se manifestado não só a favor de Israel, mas bem informados e solidários. Aqui em Israel também há uma tristeza imensa, mas a vida segue, as pessoas comemoram aniversários, compram guloseimas, lotam os shoppings e escritórios. E quando nada disso me consola, há o trabalho voluntário. Não há como um dia que começa às 4 horas da manhã para viajar 2 horas até o sul (ao lado de Gaza), dobrar caixas de papelão em uma fábrica ou levantar a ponta da trepadeira para que o pepino possa crescer, em uma fazenda, com outras 20 pessoas de 70 anos ou mais, todos israelenses que com certeza têm mais o que fazer, todos de bom humor, sem amargura. E há muito trabalho voluntário em São Paulo para elevar o espírito de todos. Recomendo muito.
Esse texto é esplêndido.
Não sou judeu, mas de alguma forma esses ataques a Israel me afetaram. E por algumas semanas eu não sabia descrever esse sentimento corretamente.
E cheguei na mesma conclusão que você: É um sentimento de perda de um mundo que não existe mais.
Um grande abraço.