#AArteDaDisciplina
Uma reflexão sobre como o gesto ritual molda o espírito na cultura japonesa
Relatos de viagem foram os precursores dos romances modernos. Hoje, contudo, esse tipo de narrativa está fora de moda. Numa época digital, inundada por fotos e vídeos de todos os lugares do mundo, escrever sobre cenários estrangeiros perdeu apelo. Por outro lado, a escrita – diferente do naturalismo do vídeo e da fotografia – preserva a subjetividade do viajante diante do local visitado. Por isso, decidi escrever sobre meus breves dias na Terra do Sol Nascente.
Para fugir do óbvio, não vou descrever aquilo que faz do Japão um país tão diferente do Brasil. Em vez disso, busco a explicação por trás dessas diferenças. Claro que uma explicação intelectualmente honesta seria multicausal, mas o espaço limitado me impede de oferecer mais do que uma simplificação. Na verdade, este texto é apenas um insight baseado numa experiência única e pessoal que tive ao assistir uma peça Kabuki.
Pela primeira vez, vi esse tipo de teatro em que os atores, com rostos pintados de branco, priorizam o gesto ritualístico em vez do diálogo típico das peças ocidentais. Enquanto os atores do Ocidente buscam demonstrar seus conflitos interiores por meio de suas interpretações, os atores de Kabuki estão preocupados em se expressar por meio de katas. É o oposto do método Stanislavski. A beleza está nos gestos treinados à exaustão, sem a improvisação existente nos nossos palcos.
Essa estética vai além do teatro e explica muito da cultura japonesa. Se, no Ocidente, a atitude exterior é extensão do sentimento interior; para os japoneses, a forma precede a essência. “Age como se fosse e te tornarás”. É a prática moldando o interior. Seja o treinamento do corpo, na arte marcial, que transforma a mente por meio das formas do Karatê; seja nos hábitos simples e repetitivos do Zen Budismo, que levam à iluminação.
Para os japoneses, quando a forma é dominada, ela torna-se algo natural. Pouco importa a emoção inicial, a repetição da forma correta cria a disposição interior. Essa substituição, em todas as esferas, da espontaneidade pela precisão é a explicação do comportamento social japonês: as reverências, o ato de entregar o que quer que seja (desde uma simples nota fiscal até um presente) sempre com as duas mãos, a cerimônia do chá…
A principal origem do respeito, atenção e organização japoneses não está no sentimento, mas na execução perfeita do ritual. A expressão individual tão comum no Ocidente é substituída pelo aperfeiçoamento coletivo; a espontaneidade, pela disciplina; a subjetividade, pela ritualidade; a emoção, pela forma.
No Japão, tudo é kata.




Estávamos com saudades dos seus textos.Belo regresso da terra do sol nascente.
Essa disciplina e organização, que se espalham por diversas áreas da vida japonesa, talvez venham da necessidade de levar uma vida ordenada em um espaço geográfico pequeno - uma ilha -, com poucos recursos naturais. Se as pessoas forçosamente não se organizarem, ninguém sobrevive.
Teremos mais relatos de viagem?