Por Rodrigo Duarte Garcia
“E, no mesmo instante em que o rei extinguiu aquela vela, todos os seus navios de guerra afundaram juntos, longe dali, ao largo da costa escocesa”. Entre duas míseras linhas, o espanto: por que é que a imaginação aceita imediatamente a relação entre uma vela apagada e o naufrágio da esquadra real, antes que a razão possa rejeitá-la como impossível? Como e por que somos levados a esse arrebatamento intuitivo que faz o absurdo parecer quase mesmo inevitável?
Assim como Chesterton – que sugeriu a passagem e as perguntas que a seguem –, eu honestamente não tenho a menor ideia. Talvez a neurociência ou a psicologia evolutiva saibam a resposta. Provavelmente alguma coisa a ver com enzimas catalisadoras ou primatas subindo em árvores. Quanto a mim, ainda prefiro a ignorância resignada de quem apenas acha que os efeitos poderosos daquela imagem têm alguma relação com a evocação misteriosa de coisas tão sagradas que não podem ser destruídas sem consequências terríveis e inconcebíveis.
A questão toda está diretamente ligada à grandeza dos mitos e a sua capacidade estética de agir sobre o homem, transcendendo o discurso articulado. Os grandes mitos têm esse poder misterioso de produzir imagens que, de alguma maneira, retratam a condição humana. E, nesse sentido específico, aproximam-se da poesia e da sua própria razão de existir.
Afinal, por que razão alguém escreve em versos, se pode expressar as mesmas ideias em prosa, de maneira discursiva? A pergunta já nasce torta, porque a poesia – como os mitos – é esse corta-caminho de acesso à imaginação e a realidades inalcançáveis por outros meios, talvez o resgate artístico mais radical – e quase milagroso – de que a linguagem é capaz. A exploração de analogias, metáforas, ritmo, rimas e música das palavras permite ao verso alcances que ultrapassam uma apreensão puramente racional. Como bem disse Kant, na Crítica do Juízo, o poeta faz “uso de ferramentas que alimentam a intelecção, dando vida aos conceitos por meio da imaginação”. É exatamente isso.
A verdade é que dessa relação nasce também um grande paradoxo. E interessantíssimo: se de um lado poesia e mito são meios de criar, com palavras, imagens que transcendem o entendimento articulado e remetem a experiências inefáveis da existência, de outro não poderiam estar mais distantes. Porque, enquanto a poesia vive da escolha exata de cada palavra, para que possa espelhar com sucesso (em ritmo, rimas e analogias) a realidade buscada pelo poeta, a finalidade do mito é alcançada independentemente do uso de uma linguagem apurada. O insight é de C.S. Lewis, que observava justamente essa irrelevância ao elogiar a obra de Rider Haggard, autor de As Minas do Rei Salomão[1]. E com muita razão: basta perceber que, ao lermos o mito de Orfeu ou de Sísifo no estilo pedestre da Wikipédia, ficamos mesmo assim assombrados com as imagens dos seus conteúdos. A finalidade, portanto, está completa e é atingida com a simples transmissão da mensagem. Ao contrário do que acontece na poesia, a troca de palavras por seus sinônimos e uma falta de preocupação com o ritmo de períodos bem construídos não interferem na essência do mito. Não por acaso, Aristóteles identificava o conceito de mythos com o próprio enredo das tragédias.