Esses dias revi Os Implacáveis (The Getaway, 1972), do mestre Sam Peckinpah. O filme tem roteiro assinando por Walter Hill, adaptado do romance surreal de Jim Thompson, o gênio iconoclasta da literatura hard boiled americana (o romance foi publicado em 1958, com o título português de A Fuga). O filme está disponível no catálogo da HBO Max.
Peckinpah pertence àquela geração de ouro do cinema americano, a chamada Nova Hollywood, um período marcado por uma renovação da arte cinematográfica do país. Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Michael Cimino, William Friedkin e tantos outros começaram suas carreiras nesse período, que tradicionalmente se estipula compreender uma década (1967-1977). Como todo período histórico, esses marcos são contestados por uma série de críticos e historiadores. Mas isso é uma discussão para outro momento.
Seja como for, Sam Peckinpah (1925-1984) fez o seu melhor trabalho justamente nos anos 70, apesar de ter começado sua carreira na indústria ainda nos anos 50, trabalhando com Don Siegel. Depois de Scorsese e Coppola, meu primeiro contato com um diretor da Nova Hollywood foi com os filmes de Peckinpah, e sempre tive um fascínio pelo trabalho dele. Considero Meu ódio será tua herança (The Wild Bunch, 1969) um western superior inclusive aos que foram dirigidos por Sergio Leone no mesmo período, e o filme que vamos discutir na coluna de hoje, Os Implacáveis (The Getaway, 1972) foi o seu primeiro longa que assisti.
Cheguei a ele por conta de Steve McQueen, ator importante do período e cujo trabalho eu então estava descobrindo: Fugindo do Inferno (The Great Escape, 1963, de John Sturges); O Canhoneiro do Yang-Tsé (The Sand Pebbles, 1966, de Robert Wise) e, claro, Bullitt (idem, 1968, de Peter Yates) estão até hoje entre os meus filmes favoritos. Tendo essa experiência, assistir Os Implacáveis foi uma experiência um tanto chocante. McQueen está diferente no filme: ele ainda tem o seu carisma e charme natural, mas seu personagem é opaco, e dado a uma série de ações e atitudes que são sinceramente desagradáveis. O filme, por sua vez, é… bem… implacável: duro, violento, em diversos pontos até mesmo niilista. Como introdução ao cinema de Sam, o filme é uma marretada direta na cara. Eu amei cada segundo, claro.
Muito se fala da violência dos filmes de Peckinpah - o que é justo, tendo em vista que sua filmografia lhe rendeu o apelido “Bloody Sam”; mas toda vez que revejo um filme dele eu saio com a sensação de melancolia, e não com a adrenalina da violência. Seus personagens são seus duplos: homens durões e autodestrutivos que, no fim, sonham com um passado idealizado e perdido, impossível de ser retomado e revivido, ainda que este, tragicamente, permaneça vivo em suas mentes.
A imaginação de Peckinpah é romântica. Assim como os Românticos de outrora, sua imaginação era cindida por um impasse: uma saudade de um passado ideal mais primitivo com um fascínio pela técnica e pelas tecnologias. Há um olhar para o passado marcado igualmente por nostalgia e por repúdio, sentimentos esses que se aplicam ao futuro. Isso se dá por que, como diz Rüdiger Safranski, “o romântico é uma postura de espírito que não está limitada a um tempo” (Romantismo: uma questão alemã, R. Safranski, trad. Rita Rios; pág. 16). Ou, como diz Benedito Nunes
Sentimento do sentimento ou desejo do desejo, a sensibilidade romântica, dirigida pelo “amor da irresolução e da ambivalência”, que separa e une estados opostos - do entusiasmo à melancolia, da nostalgia ao fervor, da exaltação confiante ao desespero - contém o elemento reflexivo de ilimitação, de inquietude e de insatisfação permanentes de toda experiência conflitiva aguda, que tende a reproduzir-se indefinidamente à custa dos antagonismos insolúveis que a produziram. Pelo seu caráter conflituoso interiorizado, trata-se, portanto, considerada assim, de uma categoria universal.
(A visão romântica, de Benedito Nunes. In: O Romantismo, J. Guinsburg (org.). Pág. 52)
Historicamente, a mente romântica, tanto na Alemanha, quanto na Inglaterra - assim como em outros lugares do mundo - surge num momento de transição: o fim do mundo antigo (e do Antigo Regime) e o nascimento da era moderna. Peckinpah é marcado por esse mesmo tipo de imaginação. Seus valores são os do passado, mas ele mesmo é um homem moderno, cercado pela Modernidade. Os românticos europeus sonhavam com o passado medieval, e é comum vermos em suas obras (dentre elas o gótico) a presença constante de ruínas de castelos da Era das Trevas. O passado sonhado por Peckinpah, indo na mesma linha, é o do Velho Oeste.