Por Hugo von Hoffmansthal
[Tradução de Érico Nogueira]
Esta é a carta que Philip, lorde Chandos, filho mais moço do conde de Bath, escreveu a Francis Bacon – futuro lorde Verulam e visconde de Santo Albano –, desculpando-se por haver abandonado a atividade literária.
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É benevolência vossa, mui estimado amigo, não fazer qualquer caso do meu silêncio, que já dura dois anos, e vos dignar a escrever-me. Já exprimir com graça e mão tão leve a solícita surpresa vossa ante o bloqueio mental de que me credes presa é mais que benevolência, é obra exclusiva, creio, daqueles grandes homens que, experimentando os perigos da vida, ainda assim não desanimam.
Concluís com o aforismo de Hipócrates – “Qui gravi morbo correpti dolores non sentiunt, iis mens aegrotat” [1] – e pretendeis que preciso da medicina, não só para curar o mal de que padeço, claro, mas também, e o que é mais, para tomar mais aguda consciência do meu estado íntimo. Gostaria de vos responder como mereceis, de me abrir totalmente convosco, mas não sei como fazê-lo. Mal sei, com efeito, se ainda sou o mesmo a que se dirige a vossa epístola, deliciosa epístola; sou eu agora um homem de vinte e sete anos, que apenas com dezenove escreveu O novo Páris, O sonho de Dáfnis e um certo Epitalâmio, essas bucólicas que, sob o fausto das palavras, não passam de composições capengas, que uma celeste rainha e alguns lordes e senhores mais que indulgentes ainda se dignam a rememorar? Sou o mesmo, ademais, que sob as arcadas da grande praça de Veneza achou em si a estrutura dos períodos latinos, cuja planta e construção me encantaram muito mais que os monumentos de Palladio e Sansovin emergindo das águas? E poderia eu, caso fosse realmente o mesmo, ter tão completamente apagado do meu inapreensível íntimo todo traço e estigma desse como que rebento do meu pensamento mais atilado, de modo que, na vossa carta, a qual jaz diante de mim, o título de um meu pequeno tratado me olhe friamente como um estranho, e eu nem sequer o possa tomar qual corriqueira estampa de palavras justapostas, mas o tenha de ler palavra por palavra, como se esses termos latinos, ligados dessa maneira, chegassem à minha vista pela primeira vez? Eu sou o mesmo, contudo, é claro, e há retórica nessas perguntas – retórica que convém às mulheres ou à Câmara dos Comuns, cujos instrumentos de poder, tão superestimados neste nosso tempo, não conseguem penetrar no íntimo das coisas.
O meu íntimo, porém, eu vos devo expor, uma excentricidade, um vício, ou, se se quiser, uma doença do meu espírito, a fim de que compreendais que um abismo infranqueável me separa tanto das obras literárias aqui (ao que parece) diante de mim, quanto daquelas lá atrás de mim e que eu, por me olharem com um olhar alheio, hesito em chamar de minhas.
Não sei se me admira mais a intensidade da vossa benevolência ou a inacreditável precisão da vossa memória ao revocardes os distintos (e pequenos) planos com que me entretinha naqueles belos dias do nosso comum entusiasmo. Eu realmente queria pintar os primeiros anos de reinado do nosso glorioso soberano Henrique VIII, bem-aventurado seja! O memorial que herdei de meu avô, o duque de Exeter, concernente às suas negociações com a França e Portugal, constituíam o meu fundamento, ou algo assim. E, partindo de Salústio, em dias, como aqueles, tão felizes e animados, o entendimento da forma me afluía como que por canais que jamais entopem, aquela forma íntima, verdadeira e profunda vislumbrada apenas além do curral dos artifícios retóricos, da qual não se pode mais dizer que organiza o material, pois o penetra, supera e cria juntamente poesia e verdade, uma interação de forças eternas, uma coisa tão magnífica quanto a música e a álgebra. Era bem esse o meu dileto plano. Mas o que é o homem para fazer planos!
Eu me entretinha com outros planos igualmente. Vossa benévola missiva também os faz vir à tona. Ora, cada um, saturado com uma gota do meu sangue, dança agora à minha frente qual mosca em parede escura, na qual não bate mais o ledo sol do dia claro.
Eu queria decifrar as fábulas e mitos que os antigos nos legaram – nos quais pintores e escultores um deleite sem cuidados, sem limites vêm achando –, qual se foram os hieróglifos de uma secreta e inexaurível sabedoria, cujo sopro acreditei sentir, vez por outra, como sob um véu.