#AEducaçãoRedentora
A demonização dos menos educados e a idealização dos mais instruídos não explica o sentido da educação na existência humana
Contra o populismo, a educação. O título de um editorial do Estadão é uma daquelas antíteses simplificadoras que, paradoxalmente, soam como slogan bastante populista.
A ideia de que a educação pode salvar o Brasil é uma dessas crenças repetidas como mantras civilizatórios. Parece sensato, parece elevado... parece progressista.
É uma dessas convicções que, quando examinadas de perto, não têm nenhuma comprovação. Mas parece óbvio. Se o brasileiro lesse mais, se as escolas educassem melhor, teríamos um país melhor, porque teríamos pessoas melhores. Portanto, contra o populismo, contra o capitalismo, contra o comunismo, contra os fanatismos, contra o ódio, contra a pobreza etc. lá estaria a educação. A redentora de todos os males. A promessa de um mundo melhor.
O editorial do Estadão parte do pressuposto de que o populismo é um desvio causado pela ignorância. “Sociedades bem informadas ainda constituem a melhor prescrição contra a disseminação desse tipo de patologia política.”
Então, como explicar pessoas que receberam boa educação, leem muito e nem por isso atuam em favor de uma sociedade mais digna e civilizada? Como explicar o elevadíssimo grau cultural e educacional daqueles que aderiram ao nazismo ou ao comunismo? E mais, como explicar que seja exatamente a universidade a instituição onde há um grau superior de incentivo para reprodução de dogmas e preconceitos?
No editorial, o autor destaca um artigo de David Brooks, colunista do jornal The New York Times, intitulado A nova segregação dos EUA.
No momento em que muitos consideram que a democracia americana está sob ameaça, Brooks se questiona: “O que um cidadão pode fazer para ajudar a colocar os EUA num caminho mais saudável?”. Para ele, um problema em especial aflige seu país: a segregação. Não só a segregação racial, mas também segregação de classe e, em particular, a segregação educacional. É ela que alimenta o apetite populista e aprofunda os conflitos que reforçam o trumpismo.
Segundo Brooks, para resistir será preciso tratar a doença, e não o sintoma. O sintoma é o populismo; a doença é a forma como, segundo ele, “nossas sociedades se segregaram em sistema de castas, nos quais toda a oportunidade, respeito e poder estão concentrados na casta educada”. Em outras palavras, sem ampliar as oportunidades para os menos privilegiados, dificilmente conseguiremos escapar da maré populista atual.
Se o povo soubesse mais, escolheria melhor, seria mais virtuoso. Se tivesse mais acesso à educação, rejeitaria os demagogos. Se tivesse lido David Brooks, provavelmente, não teria votado em um “agente do caos” – que é o modo como o educado editorialista denomina Trump e Bolsonaro. Lula é caracterizado como “mágico de quermesse”. No artigo, entre a quermesse e o caos parece existir um abismo que poderíamos evitar frequentando a escola e a universidade.
O autor é mais um daqueles que tentam fugir da armadilha de tomar um lado, mas só evidenciam o que consideram o populismo aceitável. Quando afirma que é a segregação educacional que alimenta o apetite populista e aprofunda o trumpismo, demonstra que se não fosse o populista do caos, o assunto nem estaria sendo discutido. As vozes exaustas que o trumpismo representa permaneceriam caladas, ineducadas, em seu eterno segundo plano democrático.
E esse é o ponto: quando os “bem educados” – jornalistas, professores, pesquisadores, escritores – passam décadas naturalizando o animador de quermesse, sem contrariá-lo e até o exaltando, será que não estão, eles próprios, criando o populista do caos? Será que a luz do conhecimento que imaginam ter não os cega em algumas avaliações e interpretações da realidade?
O populismo de esquerda, quando se torna caricatura de si mesmo, abre espaço para o ressentimento que alimenta o populismo de direita. Mas no fundo, se tirarmos a direita e a esquerda da frase, talvez tenhamos mais proveito. Quanto mais populismo, mais ressentimento, porque as promessas irreais e não cumpridas é que geram a frustração que pode ser convertida em ódio.
O mágico de quermesse está à esquerda do agente do caos apenas porque, talvez, seja o seu prólogo. Insistiu em fazer uma mágica para a qual nunca esteve capacitado e, então, optou pela ilusão, pelo entorpecimento e pelo ruído constante. Nesse mundo insano, criado por aquele que ainda tenta iludir as pessoas na quermesse, o mágico inepto e seus seguidores fingem não saber onde se originou o caos.
A ideia brilhante de que é a segregação educacional alimenta o populismo é verdadeira. Mas não é porque os menos instruídos sejam mais facilmente enganados. Muitos, aliás, confiam nas respostas dos que estudaram mais. No entanto, quando a realidade se impõe, faz emergir uma enorme quantidade de gente com altíssimo nível educacional a justificar contradições de forma “científica” e a blindar seus próprios privilégios com discursos sofisticados. Jornalistas, professores e intelectuais muitas vezes transformam o próprio oportunismo e autoengano em verdade oficial. Isso gera ressentimento, não necessariamente contra o conhecimento, mas contra a arrogância de quem imagina que o monopoliza. Será que esse não é um terreno fértil para o populismo? Um terreno arado e cultivado dentro das próprias instituições educacionais.
Nem o populismo, nem o autoritarismo são práticas irracionais. Pelo contrário, são formas de manipulação que demandam o emprego de um raciocínio bastante complexo. Na antiguidade, muito antes de qualquer sistema educacional democrático, a manipulação da multidão era uma forma desejável e legítima de governança. A demagogia não nasceu da ignorância do povo, mas de um modo pragmático de usar a razão por parte dos governantes. Ela nasce de múltiplos elementos e envolve o desejo pelo poder, a necessidade de pertencimento e a busca de uma figura que saiba induzir a população. Tudo humano, demasiado humano.
Por isso, a demagogia era vista por Aristóteles como uma degeneração possível da democracia e como passível de também degenerar para a tirania. Isso não ocorria pela ignorância do povo, mas pela índole do governante.
A ideia de que mais educação leva a menos populismo e autoritarismo é uma falácia. Um alto grau de formação pode, inclusive, aperfeiçoar o populismo para formas muito mais autoritárias e envolventes. A Alemanha nazista era uma potência intelectual. O Terceiro Reich usou ciência, tecnologia, engenharia social e estética de alto nível para justificar o genocídio. Nem o populismo nem o autoritarismo são irracionais. Muitos intelectuais viram o comunismo como uma promessa de justiça social e relativizaram os expurgos, os gulags e todo tipo de atrocidade praticada em nome da revolução.
A educação não cura o populismo. Pode ser, inclusive, seu instrumento mais sofisticado para constituir, estimular e manter regimes autoritários.
Se há algo que poderia ajudar a acender um lume em meio ao caos, não é repetir slogans como o de que “a educação salvará o mundo do mal”.
Não se trata de, com isso, diminuir o papel da educação. Ao contrário, é justamente por reconhecê-la como um bem essencial que devemos resistir à tentação de tratá-la como ferramenta redentora de todos os males sociais. A educação não é uma vacina contra o populismo, nem um atalho para nossas mais belas utopias. Ela é, antes de tudo, uma prática humana. Um gesto que antecede qualquer finalidade civilizatória, política ou econômica. Educamos porque é humano educar para garantir a sobrevivência da prole. É assim que transmitimos cultura, criamos vínculos, expandimos horizontes... ou, como diria Brás Cubas, transmitimos o legado da nossa miséria.
Desde os primeiros passos da filosofia, duas recomendações brilham com força em tudo aquilo que vale a pena ser lido. A primeira é a máxima socrática de que quanto mais sabemos, mais temos a dimensão de que nada sabemos. A segunda é a noção de que a natureza deve ser respeitada. Não apenas o ambiente natural, mas a própria natureza humana. O ser humano nada sabe e passa a vida aprendendo a ter consciência disso.
Ter muitas informações ou teorias na cabeça não torna ninguém automaticamente mais virtuoso. A virtude é outro tipo de exercício mental. Exige ação, escolha, prática – que podem ser melhores com o estudo, mas não dependem exclusivamente dele. Saber é importante, mas saber que o saber não basta é ainda mais.
Perfeito, Laís. Tragicamente, estamos inundados de evidência que contraria a ideia da educação redentora. Nunca se deu tanta "educação sexual" nas escolas, e nunca houve tanta gravidez em adolescentes. O povo alemão era educadíssimo, declamava Goethe de cor, tocava Schubert desde a infância, e deu no que deu. Tudo depende de quem educa e o que ensina. A denazificação da Alemanha foi através da educação, demorou uma geração até "pegar", mas "pegou" - só que já está se decompondo, como tudo de valor na Europa.
Cara Laís, como explicar que pessoas instruídas elegem Lula e Bolsonaro? Pior do que eleger é adorar, mitificar.