A imprensa alerta: a polarização avança no Brasil.
Corra! Procure abrigo. Vista-se adequadamente. Hidrate-se. Use filtro solar.
A polarização é noticiada como se falassem de um tsunami, apenas olhando para a espuma das ondas que invadem a cidade.
“Quem ainda acredita nessas pesquisas?” – perguntará o incrédulo assinante. É preciso que se diga: não se trata de acreditar. Trata-se do que temos à mão para identificar alguns padrões, ou ao menos para dar ares de cientificidade às nossas sempre corretíssimas opiniões.
É o que ocorre com o clima. Apresentam-se números, gráficos, modelos: a Terra aqueceu, a Terra esfriou. Nada muda de fato. A natureza continua contingente e incontrolável. Mas quando temos números nos sentimos mais protegidos. É o que temos.
Vejam só um exemplo: dias desses um terremoto de magnitude 8,8 sacudiu a península de Kamchatka, na Rússia. Tsunamis foram previstos e poucos dias depois, um vulcão que estava adormecido há cerca de 600 anos resolveu explodir. A natureza deu seu espetáculo. E os danos humanos? Totalmente desproporcionais ao tamanho do evento. As sacadas dos edifícios na Rússia são mais perigosas do que um terremoto dessa magnitude e uma erupção vulcânica.
Os números ajudaram: sirenes soaram, alertas foram emitidos, milhões de pessoas foram removidas das cidades atingidas. A única vítima fatal foi uma mulher de 58 anos, no Japão. Ela morreu justamente durante o processo de fuga, tentando fugir da área costeira.
Muitas outras vidas foram salvas, com certeza. Mas é difícil não pensar na tragédia dessa única mulher que não morreu devido à força da natureza, nem à falta ou à falha dos números, mas da tentativa de obedecer os protocolos. Morreria de qualquer jeito? Jamais saberemos. Mas os japoneses provavelmente pensarão em mudanças que eliminarão até mesmo essa brecha.
Crédulos e incrédulos morrerão. Mas também podem ser salvos. O mar não pergunta se você acredita ou não no aquecimento global antes de subir. O vulcão não exige que você assine um manifesto ambiental antes de explodir. Os números funcionam como alerta. O protocolo entra em ação. Você corre junto com o negacionista, o cientista, o cético e o místico e vai para o lugar seguro previamente calculado. A natureza não polariza. Ela engole..
Mas essa neutralidade dos números é breve. A culpa também é da natureza que nos amedronta. Fatalmente, os pobres números também são tragados pela nossa necessidade de dividir o mundo entre bem e mal. Até os gráficos de temperatura viram bandeiras. Até os dados sobre emissão de carbono ganham lado. E o que deveria ser um consenso técnico para salvar vidas, vira trincheira ideológica para campanha política.
Se o deus monoteísta – que punia com pragas e dilúvios – caiu em desuso, não há problema, há sempre outras divindades para tirar da cartola. A mãe natureza vingativa nem exige tanta fé, mas exige culpa e um incomensurável e sempre perigoso medo. Os números, antes ferramentas, viram oráculos. São lidos como profecias, não como dados. O cientista vira sacerdote. O colapso ambiental, apocalipse.
E assim, mesmo no campo da ciência, voltamos sempre desesperados à velha e boa estrutura religiosa: o mundo dividido entre os que acreditam e os que negam, os puros e os impuros, os salvos e os condenados. A polarização não poupa nem os termômetros.
Por que na política seria diferente? É a maior expressão da nossa natureza particularmente humana.
Por vezes, queremos que os números nos salvem. Outras vezes, imaginamos que nos agridem. Mas, assim como os eventos naturais, não servem a isso.
Negacionista? Não. Sou como o assinante: incrédulo. Enquanto não tiver que pagar fiança... Nesse caso, me veria obrigado até a acreditar na justiça.
O mesmo acontece com a política. Imagino a cena. Desde que os primeiros homens se reuniram para viver em pequenos agrupamentos sedentários, rapidamente perceberam que precisavam de um líder.
Provavelmente, um líder natural surgiu quando o mundo ainda era rousseauniano (perdoem o colossal anacronismo), bom e calmo. Eu imagino que, num tempo primitivo qualquer, o cara que sabia caçar os maiores e mais apetitosos animais, que sabia arrancar com precisão a pele, que conseguia fazer fogo mais rápido, que sabia organizar as pedras de um modo que deixava o acampamento mais protegido.... quem não ia querer ser feliz por poder viver perto de e ser conduzido por quem tivesse todas, ou pelo menos algumas, dessas características? Um líder. Era o paraíso na Terra.
Mas como todo humano em qualquer tempo e espaço, nem sempre ele conseguia fazer tudo com perfeição e virtuosa generosidade. Às vezes, com certeza, ele ia considerar muito justo ficar com o melhor lugar perto do fogo, com a parte mais macia da caça...
Começaram a surgir as maledicências, um reclamava que ficou com o pedaço ossudo do bicho, outro ficou com um lugar ruim em volta do fogo, uma pedra caiu no dedão de outro... Insatisfeitos se reuniam. Reclamavam. Um belo dia passaram a ouvir com atenção o mais ressentido de todos. Aquele que se sentia mais humilhado por não saber fazer nenhuma das atividades direito, percebeu que ali havia um nicho. Eis que o adversário político foi criado e nunca mais deixou de existir.
Tudo muda para continuar como está, já dizia o italiano. Fundamentalmente, o comportamento humano é tão natural quanto o resto da natureza. Pouca coisa mudou depois que o primeiro grande ressentido entrou na política.
Mas ninguém gosta de imaginar coisas assim. É sempre mais emocionante pensar que tudo é uma grande novidade, mas, no fundo, o exagero retórico é o mesmo.
A polarização é um desses assuntos tratados como uma novidade dos nossos tempos. Culpa das redes sociais e da extrema direita, claro. Principalmente, porque, para manter a tradição polarizadora, é preciso dizer que o lado maligno acabou com todo o belo edifício moral no qual vivíamos e que só há um jeito de salvar nossas almas.
A esquerda, que antes era o sujeito humilhado que ficou só com o osso e que levou uma pedrada no dedão do pé, agora se apresenta como o melhor caçador do bando, mesmo que só traga uns ratinhos magrinhos para a tribo e ainda fique pulando num palanque mostrando como é melhor se alimentar do ratinho do que de um gnu. Mesmo depois de todo mundo descobrir que o gnu foi desviado dos caras que sabiam caçar, para servir só aos familiares e amigos da esquerda. Diante do adversário político, eles são o bem lutando contra as forças malignas. Não importa o que fazem para o bem comum, mas sim suas melhores e dignas intenções. E não se engane, os bons caçadores de gnus, provavelmente não estão nem aí para as ideológicas lateralidades extremas ou moderadas. Têm mais com o que se ocupar.
Os extremos se enfrentam como placas tectônicas, cada um com sua lava ideológica pronta para explodir. E quem tenta escapar do confronto, quem não quer escolher entre o ratinho magro e o gnu desviado, acaba esmagado no meio. A única vítima real é o sujeito que não quer participar da guerra, mas é arrastado por ela. Logo ele, que saberia caçar o gnu sem ter que se sujeitar a aceitar o rato, nem ter de participar do roubo do gnu…
Nada é melhor do que números numa tela para concluirmos: viu só, a polarização aumentou, os números estão dizendo. A culpa é de Trump? De Bolsonaro? Ou de Lula?
Os números não servem a isso. Mas os usamos assim, para abandonar ou reforçar crenças, em vez de tentar enxergar o óbvio. Tudo o que Trump, Lula e Bolsonaro queriam era ver a polarização se intensificar.
A polarização sempre existiu e, em seu palco, os piores do bando sempre fazem malabarismos para nunca deixar de brilhar.
Que texto maravilhosamente metafórico, meu Deus! E quanta verdade encerra! João Falstaff é genial. Baita pensador que nos expõe o que pensa de forma inquietante. Embora fique triste com o que li, ganhei o dia. Obrigado NEIM por fazer o não jornalismo de forma correta.
Polarização leva ao radicalismo que a meu ver , quem se deixa levar, é muito ignorante.