Totalmente selvagem começa com planos abertos mostrando Nova York. A decupagem de Demme vai do macro ao micro: do skyline de Manhattan, mostrando seus cartões-postais (o rio Hudson, os arranha-céus, a ponte do Brooklyn, etc) até fechar em um diner qualquer. A câmera de Demme passa pelos típicos personagens que frequentam o local até localizar o protagonista do filme, do yuppie Charles Driggs (Jeff Daniels). Após terminar sua refeição, Driggs sai sorrateiramente do restaurante, sem pagar. A pequena infração é percebida pela femme fatale Lulu (Melanie Griffith), que confronta Driggs na rua. Ela logo percebe que Driggs, por trás de sua aparência, é um closet rebel (algo como “rebelde de armário”), que aparentemente se deleita em cometer pequenas infrações - ou atos de rebeldia - em seu cotidiano outrora planejado e ordeiro. Ou seja, há algo de selvagem por trás da aparência civilizada de Driggs. Esse momento do filme de Demme é espelhado em Clube da luta: quando Marla Singer aparece nos mesmos grupos de terapia que Jack/O Narrador frequenta, ele logo percebe que ela, assim como ele, são fakes; isso é, não pertencem àquelas sessões de terapia em grupo porque ambos estão lá como passageiros e não como vítimas/pacientes. Isso perturba Jack/O Narrador, pois a presença de Marla, assim como Lulu no filme de Demme, revela algo sobre ele. E ambas mulheres também se vestem como arquétipos de femme fatales.
A partir desse encontro, o filme se torna uma espécie de releitura screwball noir do gênero road-movie, onde a típica jornada de autodescobrimento que caracteriza filmes de “amantes em fuga” como Vive-se só uma vez (You only live once, 1937, de Fritz Lang), Mortalmente perigosa (Gun Crazy, 1950, de Joseph H. Lewis) e, claro, Bonnie e Clyde: uma rajada de balas, além de Terra de ninguém (Badlands, 1973, de Terrence Malick), é sobreposta à uma história de amor amalucada, como Aconteceu naquela noite (It happened one night, 1934, de Frank Capra) e Contrastes humanos (Sullivan’s Travels, 1941, de Preston Sturges).