A morte é abjeta. A morte de um amigo, então, é um escândalo. É por isso que o sentido último do cristianismo só pode ser a vitória sobre a morte porque se ele fosse apenas um código de conduta seria risível. É pouco racional e, em grande parte das vezes, cheio de propostas absurdas. Quando São Paulo diz na carta aos Coríntios que se Cristo não ressuscitou vã é a nossa fé, ele não está querendo apresentar uma evidência para a crença na ressurreição em sentido algum; está querendo nos mostrar um condicional sobre como se deve olhar para algo como um messias. Ou é assim, ou tudo é vão.
E semana retrasada morreu o Alexandre. Dizer que foi um irmão mais velho é dizer muito pouco. Por dois terços da minha vida conheci o Alexandre. Foi ele quem me ensinou a dirigir, comprou-me livros dos quais eu precisava durante a graduação e foi a primeira pessoa para quem liguei quando minha mãe morreu num hospital, na minha frente. Tocamos juntos por alguns anos. Conversamos as conversas mais decisivas da minha vida. Na terça-feira combinamos que no sábado nos falaríamos por ligação de vídeo, mas ele morreu na quinta e, no fim das contas, no sábado eu estava diante do corpo dele em uma das salas de velório no cemitério da Saudade, em Santo André.
O grande Samuel Johnson publicou no The Idler, em 1759, um ensaio intitulado “Serious reflections on the death of a friend”. Algumas fontes dizem que, na verdade, Johnson referia-se a sua mãe. Enquanto estava no aeroporto esperando pelo voo comprado de última hora para ver o corpo do meu amigo por mais algumas últimas horas, reli o texto que é, todo ele, uma efusão da nossa miséria e do nosso abandono. Para mim, tudo cabe nesta fórmula: “A vida que tornava minha própria vida agradável chegou ao fim, e os portões da morte se fecharam sobre minhas perspectivas”.
Em relação à morte, a tristeza das palavras de Johnson sempre se choca, na minha alma, com a ideia grandiosa de um texto que, para mim, é a melhor coisa escrita pelo filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard. Em 1847 ele publicou As obras do amor. Ali, na segunda parte, um dos capítulos se chama justamente “A obra de amor que consiste em recordar uma pessoa falecida”. Diz o filósofo:
“Para examinar corretamente se o amor que há em alguém é fiel, podemos, é claro, afastar tudo aquilo com que o objeto do amor poderia, de alguma maneira, ajudá-lo a ser fiel. Mas tudo isso, justamente, está afastado na relação com a pessoa falecida, que não é realmente nenhum objeto. Se o amor ainda permanece, então ele é o mais fiel de todos. A obra de amor que consiste em recordar um falecido é, pois, uma obra do amor mais desinteressado, mais livre e mais fiel. Vai então e exerce-a; recorda o falecido e aprende justamente assim a amar as pessoas vivas do modo mais desinteressado, livre, fiel”.
Dentre todas as coisas que consigo pensar agora sobre o meu amigo Alexandre é principalmente que ele, de fato, amou muitas pessoas desse modo genuinamente desinteressado. Ele amou a mim dessa forma. Talvez ele tenha aprendido isso com as mortes pelas quais ele mesmo teve de passar em sua própria vida – irmão, pai –, talvez em algum dos inúmeros livros que leu. O Alexandre entendeu muitas coisas na vida e eu tive a sorte de explicar a ele algumas delas. Mas me lembro que, em uma das nossas conversas que atravessaram a madrugada, ele me dizia que às vezes pensava que nós, seres humanos, entendemos Deus como a sua cadela, a July, uma husky muito bonita, entendia o que nós falávamos a ela – com mais docilidade do que compreensão. Há duas semanas sou eu quem está sem entender, Ale.
Que o Senhor o tenha junto Dele.
🙏🏼
Lindo texto. Tb perdi minha mãe há três meses. Creio que a perda de um grande amigo seja tão forte quanto. Meus sinceros sentimentos.