Em Halloween Ends, o último filme da trilogia Halloween, dirigida por David Gordon Green e roteirizada por Green e Danny McBride, a Arte pode ser uma forma de se fazer sentido do mundo.
Buscando inspiração nos outros filmes da franquia, em especial Halloween III: A Noite das Bruxas (Halloween III: Season of the Witch, 1982, de Tommy Lee Wallace) e Halloween 4: O Retorno de Michael Myers (Halloween 4: The Return of Michael Myers, 1988, de Dwight H. Little), Green conclui de forma magistral o projeto que começou com o estupendo Halloween (idem, 2018): uma exploração sobre a natureza do Mal. Michael Myers é, como diz Sam Loomis (Donald Pleasance, no filme original de 1978, de John Carpenter), a encarnação do Mal. Mais do que um corpo, ele é uma presença, uma emanação (como Little nos mostra na brilhante sequencia inicial de Halloween 4). Mas o que isso significa? Ao longo de seus três filmes, Green levanta hipóteses, por vezes contraditórias, por vezes complementares. No filme de 2018, um adolescente expressa confusão sobre porque os adultos de Haddonfield tanto temem Michael Myers, um “maluco que esfaqueou umas pessoas há 40 anos atrás”. Afinal, hoje vivemos em um mundo onde terroristas sequestram aviões os chocam contra arranha-céus e adolescentes entram armados em escolas e atiram contra seus colegas e professores. Um doido com uma faca e uma máscara é fichinha, não? Mas o que Green explora é que o Mal de Myers é uma loucura que infecta as pessoas. Não qualquer pessoa, mas sim aqueles tipos mais sensíveis ao Mal (assim como pessoas sensíveis em Lovecraft sonham com Cthulhu).
No filme Session 9 (sem tradução no Brasil, 2001), o diretor Brad Anderson sugere que o Mal e a loucura afetam “os fracos e os machucados” (“the week and the wounded”). Green parece estar em diálogo direto com Anderson, e o Mal de Myers se alastrou por Haddonfield em Halloween Kills (idem, 2021) e ficou dormente em Ends. E, quando ele volta, é justamente “infectando” certas parcelas da população. A cidade mais uma vez começa a se destruir por dentro, e Green, com maestria, mostra que Myers - o Mal - está presente nos nossos pequenos gestos e ações, na “crueldade nossa de cada dia”. Xingamentos, abuso sexual e emocional, humilhações, esfaqueamentos, atiradores em escolas e atentados terroristas: tudo segue uma lógica de escalada apocalíptica. É neste ponto que Green referencia o brilhante Halloween III: o Mal é um ritual macabro, sazonal, que se reinventa constantemente. E, mais importante: um ritual antigo, cujas origens são mais antigas do que a própria Antigüidade Clássica. Suas instruções estão cravadas em pedras e escritas em língua morta. Um ritual que permanece, mesmo em nossa modernidade tardia e tecnológica. E o Mal contido nesse ritual, caso não seja constantemente vigiado, certamente se espalhará e entrará em nossos lares. E, uma vez feito isso, o risco é apocalíptico.
E a solução? Mais do que a destruição completa, total e física de Michael Myers, a Arte é o caminho para fora desse pesadelo. Laurie Strode (Jamie Lee Curtis) escreve a sua biografia, as memórias de sua vida lutando contra o Mal, como exorcismo e como manual. É inclusive divertido imaginar Laurie Strode como uma Annie Ernaux do universo slasher.