“Nunca vi Mark [Zuckerberg] lendo um livro ou expressando qualquer interesse por livros”, disse um amigo, que recordava muitas maratonas noturnas de video game em que vagas ideias sobre guerras e batalhas eram usadas como alegorias para o mundo dos negócios. “Ele estava absorvendo ideias que pairavam no ar naquela época, mas não tinha um grande interesse na origem delas. E definitivamente não tinha nenhum interesse mais amplo em filosofia, pensamento político ou economia. Se você perguntasse, ele diria que estava ocupado demais dominando o mundo e não tinha tempo para ler”.
- Uma verdade incômoda: Os bastidores do Facebook e sua batalha pela hegemonia, de Sheera Frenkel e Cecilia Kang. Trad. Cássio de Arantes Leite, Cláudio Alves Marcondes e Odorico Leal. Ed. Companhia das Letras. São Paulo: 2021. Págs. 43-4.
I.
Segundo uma retrospectiva do site de entretenimento Inverse, os anos 2010 foram marcados por filmes que abordaram ressentimentos e conflitos de classe. Na lista de dez filmes levantados pelo site, ela começa em 2010 com A Rede Social (The Social Network, 2010, de David Fincher) e termina com Parasita (기생충/Gisaengchung), dirigido pelo sul-coreano Bong Joon-ho e lançado em 2019. Magic Mike (idem, 2012, de Steven Soderbergh), Foxcatcher (idem, 2014, de Bennett Miller), A grande aposta (The Big Short, 2015, de Adam McKay) e Corra! (Get Out, 2017, de Jordan Peele) são alguns dos outros filmes que pertencem à mesma lista1. No entanto, além do próprio ressentimento de classe, o autor da lista, Ted Meyer, sugere que a própria ansiedade masculina de Zuckerberg também é um fator que também contribuiu na criação do Facebook.
O que temos em A Rede Social são dois membros da Geração X - David Fincher e Aaron Sorkin - analisando a ascensão de uma nova geração, a millenial, que possui seu próprio Project Mayhem: o Facebook, no caso, algo que irá revolucionar o mundo. É como se Jack/Tyler Durden, yuppies do Fim da História, percebessem que há uma nova classe social em ascensão: os techies, que trazem consigo o seu próprio conjunto de valores e cultura. O techie agrega características tanto dos hippies - com seu discurso progressista e terapêutico, na busca por uma reconexão coma Natureza e modos mais românticos de se viver - quanto com a agressividade empreendedora e capitalista dos yuppies. E os techies, assim como esses dois grupos sociais que os precederam, são igualmente narcisistas. Há muito deles na figura de Mark Zuckerberg, o líder de subversivo de um projeto que começou no subterrâneo de Harvard e confrontou uma elite aristocrática e tradicional.
Sendo um “manifesto” da Geração X, é com Clube da luta que A Rede Social mais dialoga, pois Jack/O Narrador é reconfigurado como Mark Zuckerberg: ambos os personagens desejam encontrar seu lugar no mundo. E, quando não conseguem, eles se revoltam contra ele, no desejo de construir um mundo dominado por eles. Em Clube da luta, Jack consegue, afinal, ficar com Marla, após criar uma organização secreta e conspiratória, com características de uma seita, e de vencer a disputa contra o seu rival, Tyler. Mas esse final é marcado pela concretização do seu (de Tyler?) plano: o apocalipse. O final de Clube da luta sugere - pois é ambíguo - que Jack e Marla, ao se reconciliarem e derrotarem Tyler, não obstante morrerão nas explosões do Project Mayhem. Eles são consumidos pelo mundo que Tyler (e Jack) criaram. Zuckerberg busca reciprocidade com membros do sexo oposto e também se integrar em Harvard (a representação da sociedade americana em microcosmo), sem nunca conseguir de fato. Não conseguindo achar o seu próprio lugar no mundo, ele cria o seu mundo, o seu globo de neve - o Facebook, rede que mediará todas as relações sociais -, onde todas as outras pessoas irão participar. A tragédia, para retomarmos esse ponto, é que Zuckerberg, apesar de ser o rei desse universo, continua sozinho, aguardando uma conexão. O mesmos temas existenciais, sociais, culturais e sexuais são reconfigurados da Geração X (Clube da luta) para a Geração Millenial (A Rede Social).
Os techies surgiram no seio da contracultura dos anos 60, na Califórnia, ao passo que o Facebook nasceu no começo dos anos 2000 na Costa Leste, em uma das mais tradicionais universidades dos Estados Unidos. Mark Zuckerberg certamente é herdeiro dos techies, mas ele também é algo completamente diferente de um Steve Jobs, Peter Thiel ou Bill Gates (ou mesmo Jeff Bezos, Elon Musk e Segrey Brin e Larry Page). Na verdade, ele nem mesmo se encaixa ao lado de figuras como Sean Parker, o criador do Napster. Mark é outra “coisa”, por assim dizer, e muito de quem ele é está contido na sua maior invenção. Para tentarmos compreender quem é Mark Zuckerberg, e como ele pode ser visto tanto como um techie quanto como um rompimento com essa categoria social, é importante passarmos rapidamente por essa figura e seu histórico.
Discutindo a criação do computador pessoal (PC), Walter Isaacson argumenta que não bastou simplesmente o gênio de alguns engenheiros e tecnologistas para que essa ferramenta revolucionária pudesse ser inventada; essa invenção só pode ser compreendida se o “fermento cultural” que animou essa comunidade que se agregava em na Baía de São Francisco e no Vale do Silício, nos anos 60, for também levado em conta como um fator tão importante quanto a aptidão técnica e empreendedorismo de seus inventores e idealizadores.
A primeira “tribo” que ajudou a formar esse “fermento cultural” foi de grupos de engenheiros (em sua maioria formados no MIT - Massachussetts Institute of Technology) que trabalhavam para corporações de armamentos que mantinham ligações estreitas com o Departamento de Defesa do governo dos EUA. Esses engenheiros - e hackers - desprezavam a cultura formal e burocrática que reinava nessas empresas (Westinghouse e Lockheed, principalmente), vendo-a como “emburrecedora” e limitadora de suas capacidades. A migração para o Oeste - em especial a Califórnia e São Francisco - era um passo natural de se libertar das amarras das grandes corporações e suas burocracias pesadas. É uma nova “conquista do Oeste”, tão mitologizado pelos faroestes de Hollywood e canções country folclóricas. Segundo Isaacson,
A essa mistura somavam-se três vertentes da contracultura. Havia os hippies, nascidos da geração beat da área da baía de São Francisco, cuja alegre rebeldia era insuflada pelos psicodélicos e pelo rock. Havia os ativistas da Nova Esquerda, que geraram o Movimento pela Liberdade de Expressão, em Berkeley, e os protestos contra a guerra nas universidades do mundo inteiro. Entre um e outro grupo, estavam os comunistas da Whole Earth, que acreditavam em controlar as próprias ferramentas, compartilhar recursos e resistir ao conformismo e à autoridade centralizada impostos pela elite de poder.2
Esse é um contexto histórico que vislumbramos em diversas cenas de A Rede Social, quando não no filme inteiro, afinal, temos um grupo de outsiders, operando seu próprio mundo underground, em Harvard, epicentro da cultura de poder dos Estados Unidos. A cena em que Mark e Dustin Moskovitz (Joseph Mazzello) “recrutam” programadores e engenheiros se valendo de uma maratona de hacking, em uma sala no subsolo de Harvard, ilustra muito bem essa subcultura que logo se tornaria mainstream.