O mundo está diferente e não parece ser para melhor. Para onde quer que olhemos, os indícios estão lá: na Europa, uma segunda guerra fria entre a Rússia e a OTAN ameaça esquentar e se tornar uma terceira guerra mundial; nos EUA, lojas de departamento são saqueadas por arrastões como se estivessem no centro do Rio de Janeiro e não na Califórnia ao mesmo tempo que as universidades viraram palcos de guerras culturais, onde estudantes defendem - sem constrangimento - terroristas do Hamas. Como se não bastasse, militantes wokes promovem o descarte da cultura clássica sob o rótulo de serem produtos imperialistas do patriarcado do homem branco.
Alguém poderia dizer, contudo, que nada realmente está mudando. O mundo sempre foi assim e cada geração acha que seus problemas são únicos e mais graves do que os das gerações anteriores. Afinal, uma série de "declinistas" já vaticinaram o fim da civilização ocidental em outros momentos: assim foi após a Primeira Guerra Mundial ou quando o mundo tomou conhecimento do Holocausto ou mesmo no momento da explosão da primeira bomba atômica em Hiroshima.
Sob essa ótica, estamos simplesmente vivendo uma nostalgia de adultos maduros em relação a um tempo em que nós éramos mais jovens, mais inocentes e mais despreocupados. Se, portanto, é apenas uma ilusão afirmar que o mundo está mudando e que tudo era melhor no passado, como explicar o aumento em mais de 60 % dos suicídios entre jovens e adolescentes americanos nos últimos anos?
Os mais variados dados da explosão de doenças mentais da "geração Z" deixam claro que há algo indubitavelmente estranho em nossa época. De certa maneira, muitos estudiosos também sentem isso, mas não sabem explicar o que realmente está acontecendo, só lhes restando criar neologismos com o prefixo “pós”. Para alguns deles, estamos vivendo num mundo pós-ocidental ou pós-westfaliano; ainda há os que digam que é pós-industrial; e também existem os adeptos da pós-verdade.
Essas palavras, porém, fazem referência apenas aos sintomas e não às causas do mal-estar que nos acomete. Mal-estar esse cujas raízes parecem estar em fatores tão desconexos e diversos como o surgimento dos camarotes em estádios esportivos e a mudança do eixo econômico dos átomos para os bits.
A chamada "camarotização" dos lugares e eventos faz com que ambientes antes democráticos, como estádios de futebol, deixem de servir para a interação entre pessoas da elite e trabalhadores comuns, isolando (física e mentalmente) os ricos dos pobres. Enquanto isso, a digitalização dos produtos faz com que mais cópias de livros, filmes e músicas desprovidas de mídias físicas possam ser vendidas sem a necessidade da contratação de mais funcionários. O resultado é a concentração de renda: jovens bilionários do Vale do Silício ficam mais ricos ao passo que a classe média, notório sustentáculo cívico e cultural de qualquer país, empobrece e retrai o seu tamanho.
Para agravar, a internet deu voz a infinitos grupos militantes que defendem uma pluralidade de compromissos éticos nocivos aos valores necessários para o exercício da cidadania. Afinal, sem referências antes consideradas absolutas, os jovens não sabem mais o que realmente exigir do outro e a quem devem lealdade, o que tem levado a uma balcanização generalizada pelo globo, inclusive com a ideia de uma nova guerra-civil americana já pairando no imaginário popular.
À medida que o multiculturalismo ganha força e os laços de cidadania se desfazem nas democracias, o mundo cede espaço para a ascensão de uma antiga forma de unidade política: para os impérios, as identidades nacionais têm pouca importância. Na Guerra da Ucrânia, Putin não deseja ser um novo Stálin, mas a encarnação de Pedro, o Grande, que irá ressuscitar a hegemonia do Império Russo em toda a sua glória, mesmo que, para isso, corra o risco da eclosão de um novo conflito global. Ao redor da pretensão imperial russa, gravita um grupo de países aliados que também buscam o seu status de outrora: a Turquia (Império Otomano), o Irã (Império Persa) e a China (Império Celestial).
Nos últimos séculos, a civilização ocidental superou grandes crises, sobrevivendo a eventos como as guerras napoleônicas e as duas guerras mundiais, e conseguiu proteger a tradição da filosofia clássica, do cristianismo e do Iluminismo num complexo amálgama cultural. Para isso, nossos antepassados foram bem sucedidos ao fazer a transição de seus símbolo de identidade: primeiro, da cruz para a coroa e, depois, da coroa para a bandeira nacional, fazendo com que o indivíduo passasse de fiel a súdito e de súdito a cidadão.
Agora olhamos novamente para o abismo sob o testemunho indiferente de nossas elites cada dia mais ricas e isoladas. Enquanto os símbolos nacionais perdem significado diante de uma miríade de pautas oriundas do relativismo cultural, a civilização é engolida pela anomia dos jovens (muitos dos quais optam pelo suicídio ou pelo crime) e pelas chamas da guerra dos estados neo-imperialistas. Diante dessas mudanças, nossa sobrevivência civilizacional depende de uma única coisa: de sermos capazes, como fomos no passado, de reinventar o repertório ocidental de identificação e pertencimento uma vez mais.
Texto tão excelente quanto triste...
Acho meio histérico esse artigo e gostaria de saber mais sobre a fundamentação de vários argumentos.
Não vejo A MENOR ambição Turca pra refazer o Império Otomano. Erdogan não é a Turquia.
A Turquia tem problemas econômicos seríssimos e de segurança também. A questão Kurda persiste. O nacionalismo que vi na Turquia recentemente (semana passada) é mais focado em Ataturk do que Erdogan. Os Turcos tem nostalgia não ambição. Leia Orhan Pamuk e seu grande livro sobre Istanbul e a alma Turca. Não sei de onde você tirou esse lance de ambição imperialista?
Quanto ao Irã: é uma teocracia minoritária. O Iraniano comum não quer o que tem e não tem como mudar. Barril de pólvora. Diria até que o que os aiatolás menos querem é qualquer identificação com o passado Persa. Querem ser e já são o centro xiita do Islã mas a ambição não vai nem tem carisma interno ou externo pra ir além.
A China tem problemas de fronteira com 100% de seus vizinhos e tem uma economia fragilizada porém não desconectavel do Ocidente. O onshoring de volta pro México (de volta ao posto de maior parceiro comercial dos EUA) é seríssimo. O mercado imobiliário está na corda bamba.
Esse lance de eixo do mal é meio ingênuo: todo esse pessoal esconde dinheiro no Ocidente que "detestam". Todos tem iPhone e esposas com votos usando calça apartada Juicy Coture.
Justo: há distúrbios em universidades mas já tivemos a mesma coisa nos anos 60 e como resultado tivemos uma geração incrivelmente criativa que, quando acabou o dinheiro do Toddynho e começou a ficar grisalha votou em Reagan maciçamente. Leia o grande Pastoral Americana de Philip Roth sobre os gatos pingados radicais patetas que decidiram ir as vias de fato por causa da sua imaginação fértil.
A algoritmizacao da informação criou um eco chamber que não representa a realidade on the ground acho....
O fato de só se cobrir essa auto hipnose imbecil da cultura woke pra mim mostra mais o bias do algoritmo do que propriamente a realidade on the ground .
Os bilionários jovens são uns gatos pingados e constantemente tem reviravolta em quem está no topo do morro. Quem sabia quem era Sam Altman 3 anos atrás?