Faz quatro anos que tento ser o cara fitness... daqueles que vai malhar de carro e volta mais cansado do estacionamento do que da musculação. Sim, eu ia de carro. Tão contraditório quanto um aluno que usa o ChatGPT num trabalho sobre ética.
Em vez de fazer um cárdio na esteira da academia, gerando ansiedade cada vez que um número aumenta na tela mostrando minhas conquistas segundo a segundo, prefiro caminhar na ida e na volta. Meu sogro perguntaria: Você corre ou só caminha?
Aliás, eu odeio ir ao shopping porque é só andar a esmo. Não tem um objetivo claro. É ir e ficar rodando em círculos, subindo e descendo escadas rolantes como as pessoas que se perdem no aeroporto quando se entra pela primeira vez.
Shopping é a academia dos indecisos. Você anda, mas sem saber pra onde. É a fisioterapia dos consumistas.
Eu sempre invejei essa galera que acorda às 5 da matina, toma um café e sai pra correr debaixo do frio e da neblina da madrugada.
Eu realmente gostaria de ser assim, mas a minha endorfina é sedentária e preguiçosa, e mesmo que não fosse, ela tem a energia de um idoso de 70 que fumou a vida inteira.
O desafio mais intenso que eu consigo encarar é ir a pé mesmo quando está chovendo. Eu me sinto o Rocky Balboa, mas apenas nas cenas em câmera lenta.
E foi nessas minhas caminhadas pra academia num dia chuvoso que eu não cedi e peguei um Uber, que eu me deparei com uma situação bastante bizarra que estourou uma bolha minha sem precedentes.
Eu moro em São Paulo e estava no cruzamento da a Avenida Tangará com a Avenida Ibirapuera. Quem mora ali perto sabe que são duas avenidas grandes que não tem semáforo pra pedestres.1
Como estava chovendo, eu corri. Só que vinha um motoqueiro do lado contrário que pensou exatamente a mesma coisa que eu. Ambos freamos. Por se tratar de quase um atropelamento, eu não estou me referindo a freada no sentido figurado, eu não caí na minha freada, mas ele sim.
Ele não vinha numa velocidade alta, mas foi o suficiente pra ele tomar um susto e frear com o freio errado, cortar o giro do pneu da frente que fez com que esse pneu deslizasse pro lado ocasionando a queda.
O retrovisor da moto veio parar no meu pé e o celular dele veio parar no outro pé. O que eu não disse a você leitor é que havia uma viatura de polícia na esquina que ligou o giroflex.
Eu peguei o retrovisor e o celular do cara e fiquei segurando. Poderia ter ajudado a levantar a moto? Poderia. Mas o celular e o retrovisor eram mais leves. Além de eu estar à vontade no compromisso de ‘Segurança Patrimonial de Itens Soltos’. Até porque, a polícia já estava ajudando ele.
E aí começa a bizarrice. Enquanto os polícias ajudavam o cara que carregava o emblema do iFood na mochila, um deles perguntou “já tem passagem?”.
Ele não tava falando de embarque antecipado ou check-in no guichê. Era passagem pela polícia mesmo.
Depois que a moto estava de pé, o outro policial começou a revistar o motoqueiro. Eu não fui revistado, mas o motoqueiro sim.
Na minha cabeça, nenhum dos dois estava errado. Ambos se assustaram com uma condição de chuva em que o motoqueiro levou a pior, apesar de não se machucar.
Então se ambos não éramos culpados, porque eu também não fui revistado e questionado se eu tinha passado pela polícia?
Até porque a diferença é bastante clara: um dos envolvidos tinha como desafio andar na chuva, já o outro de trabalhar debaixo de chuva. Um tem um motivo para estar na chuva, outro não. Quem ali levanta mais suspeita?
Isso deve ter injuriado demais o motoqueiro. Se eu estivesse no lugar dele, no mínimo eu iria achar injusto e desonesto.
Mas eu não era ele e percebi que não tinha espaço no que estava acontecendo ali — e também porque estava chovendo — continuei meu caminho até a academia porque eu tinha hora.
Fui embora e me senti estranho no trajeto e me veio uma dúvida muito forte na cabeça: “Por que cacete eu estava indo embora com o retrovisor e o celular do cara nas minhas mãos?”
Voltei lá correndo, o cara estava mostrando o documento pros policiais, deixei o retrovisor e o celular do cara em cima do banco moto.
E agora sim eu continuei rumo à academia e me apareceu outra dúvida: “E se eu tivesse levado o celular do cara embora? A polícia não viria atrás de mim porque estava dando uma geral num cara que teve a infelicidade de cair na frente deles. Aí sim haveria um crime.”
No fim, a resposta sobre a razão da polícia ter revistado somente ele não era nenhum mistério. Afinal, o entregador era preto.2
Crônica ótima! Um exercício antimaniqueísta. Carregada de nuances entre o preto e o branco. Parabéns!
É, eu tenho razão, mas você não. Continua com uma leitura equivocada.
Afinal, nem eu nem você podemos provar que foi um ato de racismo, o que seria crime.
Tanto a acusação, quanto o ato em si. Se eu desse parte, eu teria que provar. Eu não tinha provas e indícios não são provas.
Omissão é presenciar um crime e não fazer nada. E um crime certamente eu não presenciei.
Vá com mais calma nas suas críticas. Tá todo mundo a flor da pele, não precisamos de mais comentários lacradores.