#CamõesFilósofo
No dia de um dos grandes poetas de todos os tempos, nascido há 500 anos, chegou a hora de entendermos a filosofia que o inspirava.
Por João Pinheiro da Silva
1.
Muito se escreveu, na última centena de anos, acerca da filosofia em Camões. Tais estudos, embora jamais improdutivos, logo se perceberam um pouco ingratos. Quando aliamos o parco conhecimento que temos da vida do poeta caolho – em particular, dos seus estudos e leituras – ao seu génio universal e aparentemente enciclopédico, abrimos as portas para toda a sorte de especulações. O que teria lido Camões? Quem o teria influenciado? A resposta a essas questões, tão essenciais para a sua categorização filosófica, é-nos, em grande medida, insondável.
A vida de Camões está envolta numa profunda névoa, coisa que contribuiu para que, ao longo dos séculos, vários mitos se formassem em seu redor. Algumas vezes representado como um áulico decadente que namoriscava com altas aristocratas e se envolvia nas mais diversas querelas palacianas, outras como um mero pícaro cortês que se refastelava no que da nobreza superior lhe chegava, a verdade é que não temos uma forma definitiva de reconstituir a sua biografia. Sabemos, claro, do seu nascimento, entre 1524 e 1525; das suas origens familiares na baixa nobreza portuguesa; dos tumultos e desvarios que foi causando, que lhe renderam vários exílios e prisões; da sua carreira militar, que o aproximou dos Descobrimentos portugueses; das suas dificuldades financeiras recorrentes; da(s) sua(s) paixão(ões) insaciável(eis); da sua personalidade cómica e baderneira; da sua morte no anonimato em 1580… Mas pouco ou nada sabemos sobre os seus mestres, as suas influências, as suas leituras.
Foram vários os camonistas que supuseram uma passagem do poeta pela Universidade de Coimbra, onde teria agregado uma parte dos seus saberes sobre a antiguidade clássica e cultivado o seu interesse pelo pensamento humanista do seu tempo. O facto é que o seu nome jamais surge nos registos oficias da universidade. No que concerne à sua educação, podemos supor que estudou no colégio de Santa Cruz, em Coimbra, sob orientação do seu tio, Dom Bento de Camões. Não é também descabido que tenha tido contacto, em algum ponto, com o teólogo e humanista André de Resende, um frade dominicano que se especializou, qual homem da Renascença, nos estudos da Grécia e Roma antiga, e que teria, além de tutorado Camões na mitologia antiga, cunhado o termo que mais tarde tornaria célebre: “lusíadas”.
No que toca às suas referências intelectuais mais livrescas, a sua mais óbvia influência é Petrarca. Alguns dos seus poemas mais célebres do cânone camoniano, como “Transforma-se o amador na cousa amada” e “Amor é um fogo que arde sem se ver”, surgem de motes petrarquianos com que brinca, contorcendo-os e remexendo-os de acordo com a sua vontade, muitas vezes desafiando o ponto de partida do seu mestre, outras reiterando-o.
Da influência de Petrarca, por sua vez, podemos adivinhar a origem da influência filosófica que mais se sente em Camões: a do neoplatonismo. São várias as referências do poeta a um confronto entre a alma e o corpo, a ideia e o sensível, o desejo e o amor; ao ponto da camonista contemporânea Rita Marmoto argumentar que distinções eminentemente platónicas “subjaz[em] toda a sua obra”.
Sobre o neoplatonismo de Camões, muita tinta correu, mas a verdade é que parece razoável, pelo menos, à primeira vista, fazer tal aproximação. Afinal de contas, o neoplatonismo era o ar que se respirava no tempo de Camões, tão ubíquo que sequer precisamos de supor, como fez Joaquim de Carvalho, que o poeta tenha lido o próprio Platão. Quando o célebre camonista nos perguntava se “não haveria outra via, não platónica, mas platonizante, que o espírito do poeta tivesse percorrido”, desconsiderava certamente que a via platonizante era, para um Humanista como Camões, a única via disponível. Seja pela influência indireta de Petrarca ou Pietro Bembo, seja pelo conhecimento direto dos neoplatonistas célebres do seu tempo, como Marsílio Ficino, Pico della Mirandola ou Judá Abravanel, é indubitável que Camões tinha pleno conhecimento do platonismo vigente na sua época. A questão maior, contudo, é se este platonismo está apenas presente em Camões, ou se ativamente molda a sua obra.