#choquederealidade
Há um mundo subterrâneo no Brasil que afeta vidas de forma cruel - e ninguém sabe o que fazer com ele.
Enquanto você abre este site para saber do que se passou no mundo real, provavelmente já ouviu falar do caso escabroso que envolveu Jessica Vitória Canedo, uma jovem de 22 anos que teve conversas particulares (e picantes) vazadas com o comediante Whindersson Nunes e que foram divulgadas pelo site de fofoca “Choquei”.
O problema é que o diálogo era falso, a moça nunca teve uma relação aprofundada com Nunes - e, para piorar as coisas, ela teria cometido suicídio na madrugada de ontem, segundo informação transmitida pela família (que, mesmo assim, não informou a causa exata da morte). As conexões entre os fatos foram feitas imediatamente - e as redes sociais entraram em ponto de ebulição.
Criado em novembro de 2014, o “Choquei” era uma página mirrada de Twitter e Instagram que ficou notória porque, antes, fazia parte da Banca Digital, a agência de influenciadores da Mynd8, uma das mais poderosas empresas de publicidade que surgiu recentemente no Brasil. Mas não foi só isso: a página de fofocas era uma das favoritas de D. Rosângela Silva, também conhecida como Janja - sim, a primeira-dama da República -, chegando ao ponto de que ela participava de publicações em que dava exclusividade a viagens oficiais, com direito a “furos” sobre o trajeto de Lula ou sobre onde o presidente iria fazer suas compras no exterior.
Em janeiro de 2022, apesar da Banca Digital negar que a “Choquei” participava da sua lista de clientes, ela ainda assim estava dentro do site da Mynd8 (hoje, às 9h34 do dia 23/12/2023, não há nenhuma menção). Entre os influenciadores e as celebridades que usam dos seus serviços, há os nomes de Pablo Vittar, Luiza Sonza e Preta Gil (que, aliás, é uma das donas da empresa).
Os nomes dos “artistas” que são do portfólio da Mynd8 revelam uma rede subterrânea que, de forma direta e indireta, atinge o debate público no Brasil. Em outras palavras: você, como leitor, acha que está lendo uma notícia que deveria ser verdadeira, mas aquilo foi criado apenas para alterar a sua percepção a respeito de como aquela personalidade se comporta na vida real (e que, geralmente, não passa de uma rematada mentira). Além disso, há uma estratégia deliberada para, com o intuito de prejudicar a carreira de concorrentes na mesma área, criar um clima de “cancelamento” permanente.
No centro desse emaranhado de interesses, há a figura ambígua de Raphael Gomes, um jovem de 29 anos que fazia anúncios virtuais para empresas de sua cidade-natal, Goiânia, e teve uma ascensão social e financeira impressionante. De acordo com um pequeno perfil feito pela revista Piauí sobre sua pessoa,
O Choquei nasceu no Instagram como hobby de um então vendedor de chip da TIM filho de um autônomo com uma funcionária pública. “No começo, eu basicamente republicava fotos de artistas”, lembra Raphael Sousa. Um exemplo trivial: postar foto dos atores Bruno Gagliasso e Giovanna Ewbank ao lado da filha, Titi, com a legenda “fofos”. Por trabalhar em uma operadora de telefone móvel, passava o dia com o celular na mão e, assim, conseguia conciliar as postagens com a venda de chips. O Choquei começou a dar retorno financeiro quando atingiu 100 mil seguidores, número conquistado meses após a sua criação. As primeiras publis foram de lojas de Goiânia, interessadas em alavancar as vendas e de quebra ganhar novos seguidores. A coisa cresceu, se profissionalizou e conquistou anunciantes gigantescos, como Ambev e Americanas.
Até dezembro de 2021, o Choquei integrava o casting da Banca Digital, dos empresários Murilo Henare e Fátima Pissarra, especializada em representar contas de Instagram junto ao mercado publicitário. Sousa decidiu não renovar o contrato porque todo trabalho precisaria ser intermediado pela Banca Digital – antes, ele tinha autonomia para negociar sozinho os cachês de “presenças VIP” e acompanhar a gravação de DVDs de artistas, por exemplo. Segundo ele, o tom da cobertura política, com uma linha editorial tão clara, não impactou em seu faturamento nem afastou potenciais anunciantes. Nos últimos dias, Sousa fechou contratos publicitários com a cervejaria Spaten, com a marca de higiene pessoal Dove e com a rede de fast-food McDonald’s para ações de Black Friday. “Na verdade, tem mais gente querendo anunciar.”
(Dois detalhes sobre este trecho - e a importância dele ser publicado aqui de forma extensa. O primeiro é que, ao citar quem comanda a Banca Digital, o nome de Preta Gil sequer é mencionado; o segundo é que isto acontece justamente na matéria referida no link em azul, que é sobre a mesma Banca Digital, cujo título é igual ao de uma reportagem semelhante que a Piauí publicou há alguns anos, de autoria de Luis Maklouf Carvalho, sobre a FSB, a mais poderosa agência de comunicação corporativa, responsável por influenciar diversas pautas de redação - e a qual ninguém consegue acessar porque o texto está fechado para assinantes da revista. Será uma coincidência ou falta de criatividade dos editores?)
Desde ontem, Raphael está sendo o Judas da vez, e já trancou o seu perfil no Instagram. As acusações são as de sempre: a de que ele se vendeu para o governo Lula; a de que é necessário ter uma lei de regulamentação das redes sociais para impedir tragédias como a de Jessica; a de que a página de fofocas precisa ser responsabilizada criminalmente pela morte da moça. A situação está tão grave para o rapaz de Goiânia que o “Choquei” já foi jogado para os leões por um dos maiores concorrentes da Banda Digital, o “influenciador-metido-a-intelectual-público” Felipe Neto.
Todas essas afirmações têm um fundo de verdade - mas não ajudam a entender o problema que ronda esse mundo subterrâneo dos influenciadores que afeta vidas, sem ter nenhuma responsabilidade com as consequências, às vezes mortais.
E o problema é o seguinte, meus caros leitores: ninguém sabe o que fazer com este “novo” mundo. Ele já faz parte da nossa realidade, não há como evitá-lo e teremos de aprender a conviver com sua crueldade intrínseca.
E não é um mundo tão “novo” assim. Historicamente, a imprensa e a fofoca sempre caminharam de mãos dadas desde o início dos tempos. Poucas pessoas se lembram, mas no início do século XX havia um homem chamado William Randolph Hearst, que simplesmente controlava todo o jornalismo dos EUA (aqui, no Brasil, o equivalente foi Assis Chateaubriand, com o seu conglomerado dos Diários Associados, personagem de uma bela biografia de Fernando Morais, Chatô - O Rei do Brasil).
Segundo Otto Friedrich, em seu clássico A Cidade das Redes,
“Hearst foi um dos bichos-papões dos liberais daquela época, um homem cujo controle de um grande império jornalístico dedicado à política reacionária e ao crime barato parecia torná-lo um demagogo altamente perigoso. O fato de que seus jornais de modo geral perdiam dinheiro e tinham poder limitado não impedia seus detratores de se preocuparem com o potencial de sua sinistra influência”.
A distância histórica do trecho acima mostra algo que ainda não conseguimos entender agora, justamente porque estamos no centro do ciclone: semelhante a Hearst naqueles tempos e que, ainda assim, conseguiu prejudicar a carreira de Orson Welles - diretor de um filme baseado na sua trajetória (o famoso Cidadão Kane) -, o mundo subterrâneo dos influenciadores também irá perder dinheiro no longo prazo, com um poder limitado sobre a percepção da sociedade.
Porém, antes de anunciar que o imperador está nu, muitos inocentes terão a sua reputação abalada e, assim como a família de Jessica Vitória Canedo, suas vidas completamente alteradas - e para pior.
E é justamente para encontrar uma saída dessa arapuca que o Não É Imprensa já está produzindo uma série sobre como esse mundo subterrâneo precisa ser denunciado com todas as forças, mostrando suas relações sinistras e ocultas entre as celebridades e a imprensa - a qual, na verdade, não denuncia este mecanismo perverso em suas ramificações pois ela deseja ser nada mais, nada menos que um “Choquei” do mainstream.
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Pé na porta e sangue na parede, Martim!
Já passou da hora de alguém revelar como funciona e quem sãos os "anjos" por trás de todo tipo de pântano que existe nas mídias e nesse bananal onde vivemos. 👊
Que vcs tenham sucesso! Todos estamos precisando desse choque de realidade; pena q tantos ñ tenham consciência disso...