“Quem é o judeu?”
Pórcia/Baltazar - O Mercador de Veneza - Ato IV, cena I
Em um pequeno ensaio intitulado Construir o inimigo, o escritor Umberto Eco faz uma reflexão da importância do “inimigo” para a construção da identidade nacional - e não importa se o inimigo é externo ou interno, nativo ou estrangeiro. A identidade italiana foi moldada por Mussolini tendo em vista as demoplutocracias judaicas; durante boa parte do século XX os Estados Unidos foram definidos pela oposição ao comunismo soviético, com a queda da URSS, eis que surge das poeiras do deserto afegão o terrorismo jihadista e um novo opositor, o Califado Mundial.
O inimigo será aquele que também nos permite medir nossos valores, nossa moral, nossa justiça - é fundamental, portanto, a existência desse outro que não pertence ao nosso grupo para que assim possamos nos reconhecer como habitantes de uma mesma terra e credo, hábitos e costumes.
Este outro será uma ameaça para nossa identidade nacional, para nosso grupo, para nossos valores. Ameaça mais grave ainda quanto mais próximo, semelhante e inserido em nosso meio é este outro exótico - exemplar é o judeu, que já na Roma de Tácito será visto como profano e posteriormente será tão arraigado o antissemitismo nas sociedades cristãs, o imaginário tão radicalmente preconceituoso, que se aventará a crença de que do povo judeu nascerá o arqui-inimigo de Deus, o próprio anticristo.
Eco afirma que a figura do inimigo não pode ser abolida dos processos civilizatórios, que é necessário aceitar tal fato, não fingir que não existem inimigos, mas à partir de sua alteridade, compreendê-los.
William Shakespeare escreve O Mercador de Veneza em um período de efervescente antissemitismo na corte da Rainha Elizabeth. O antissemitismo era alimentado por teorias conspiratórias envolvendo Rodrigo Lopez, um judeu-português convertido, que foi acusado de tentar assassinar a rainha - e apesar de nada ter sido realmente provado, o marrano foi parar na forca. Representar judeus como vilões em peças e textos era comum no período - e o sucesso de O Judeu de Malta, de Christopher Marlowe era prova de que se podia ter bons ganhos explorando os ressentimentos do populacho, mas Shakespeare era um autor mais ciente das ambiguidades e paradoxos da natureza humana.