#ContraOHomemBranco
A incrível história da escritora briguenta que pagou pedágio para sobreviver no mundo da cultura diletante
Quando a Companhia das Letras lança um livro, e acredita no seu autor, funciona assim: há uma blitzkrieg na mídia: então, nesta semana, o leitor (esse sujeito ainda existe? #pensamentosincofessáveis) não consegue deixar de notar a presença de uma tal de Lígia Diniz. Tem podcast na revista 451; tem matéria-resenha no NexoJornal e, claro, tem release-divulgação texto na Folha de S.Paulo, assinado pelo correspondente da editora no jornal por Walter Porto.
A essa altura do campeonato, o leitor rabugento do NEIM que sobreviveu ao primeiro parágrafo deve estar se perguntando, mas quem é Lígia Gonçalves Diniz, e por que será que ela é importante?
O leitor rabugento do NEIM está certíssimo. Lígia Gonçalves Diniz não é importante, tampouco os livros (dela e dos outros), a cultura diletante da Folha e as supostas resenhas de jornais. Ocorre que há um elemento muito irônico neste episódio.
A obra de Lígia Gonçalves Diniz se chama O homem não existe. E a chamada da Folha louva a obra pela sua própria existência:
Crítica literária destrincha a masculinidade para entender como ela moldou a cultura
Ligia Gonçalves Diniz equilibra a provocação, o rigor acadêmico e a leve chacota em 'O Homem Não Existe'
Até aí, tudo normal, nem precisamos do nosso VAR, o nosso querido tradutor de lero-lero. O texto é de opinião e os elogios, sobretudo os elogios, são permitidos no jornalismo de compadrio do beautiful people que se pratica no Brasil.
Ainda assim, o estagiário quis saber, para além do louvor, do que se trata o livro de Diniz. A informação custa alguns parágrafos, mas aparece, junto com um dado importantíssimo a respeito da personalidade da autora: o desejo de ir à briga por pura pirraça -
Em um dos momentos inspirados de seu novo livro, ela afirma que deseja ir à briga por pura pirraça, como tantos líderes militares fizeram ao longo da história, e ser presenteada com "um epitáfio melancólico, em vez de um comentário jocoso sobre histeria ou tensão pré-menstrual".
Diniz, que é doutora em literatura e dá aulas na Universidade Federal de Minas Gerais, parte da psicologia, mas muito mais da ficção, para investigar o que é o masculino. Na verdade, é melhor abrir espaço para que ela explique em suas próprias palavras. "Quero distinguir os valores masculinos hegemônicos daqueles universais, se é que estes existem."
Aqui, teremos de usar o tradutor de lero-lero. Quando Porto apresenta as credenciais de Diniz, já escancara que ela é alguém com patente no mundo literário (“doutora em literatura, que parte da psicologia, mas muito mais da ficção, para investigar o que é o masculino”). Mas parece que nem mesmo Porto se deu por satisfeito com a mistificação de suas palavras e pediu para a doutora explicar. Saiu um doutor digno do departamento de literatura ("Quero distinguir os valores masculinos hegemônicos daqueles universais, se é que estes existem".)
Walter Porto, então, discute a construção da obra de Diniz. De acordo com o jornalista:
A leitura, afinal, é um mergulho nas emoções e na estrutura de pensamento de seus autores. Durante a maior parte da história, esses autores eram quase todos homens. De novo, a sucintez de Diniz: "Quantas vezes nós, mulheres, alucinamos ser homens?"
Essa complexidade toda não significa que "O Homem Não Existe" seja impenetrável, com o perdão do trocadilho fálico. É um livro assim, cheio de piadas, comentários espirituosos e referências que vão de vídeos do comediante Andy Samberg a séries bobinhas de Fábio Porchat.
Mas o estagiário era capaz de jurar que o assunto era literatura – e que Lígia Diniz é crítica literária. Então, uma vez que perguntar ainda não ofende, como Fabio Porchat foi aparecer aqui? Quer dizer, o livro da crítica literária traz referências ao humorista do Porta dos Fundos? Porra, Walter Porto, assim você me deixa mal com o leitor rabugento do NEIM.
Nos parágrafos a seguir, Walter Porto aponta o rigor de Diniz:
Mas o grosso da obra mobiliza uma quantidade imensa de referências bibliográficas. Muitas ponderações surgem de clássicos como Sêneca, Aristóteles e Homero, homens que fundaram o pensamento ocidental —aliás, fundaram masculamente com "fúria", a primeira palavra da "Ilíada".
"Eu concordo completamente que os homens precisam pensar mais a respeito de si próprios", diz a carioca, em conversa num café em São Paulo, contando que uma semente do livro nasceu quando ela ouviu um podcast com mulheres reclamando sobre o quanto os homens ficavam à vontade em "analisar o feminino".
O advogado do NEIM, tomando o café enquanto acompanha a redação deste texto, proibiu o estagiário de comentar o trecho “o grosso da obra mobiliza”. Ainda assim, é incrível como Walter Porto tenta ajudar Lígia Diniz e, involuntariamente, acaba mostrando quão pueril é sua motivação.
Afinal, para responder a um podcast (existe algo que simbolize mais a perda de tempo dos nossos dias do que um podcast?) em que homens falam mal de mulheres, ela foi atrás de machos como Sêneca, Aristóteles e Homero.
A própria Lígia Diniz reconhece isso:
"Mas por que a gente não pode falar dos homens? Essa é minha inquietação original. Em vez de ficar dizendo o que os homens devem ou não fazer, por que a gente não tem direito de fazer certas coisas que os homens fazem, mesmo que sejam babacas?"
Walter Porto não se dá por vencido e tenta uma última cartada: mostrar que Diniz é, no fundo, uma pessoa descolada, como os pares da cultura diletante da Barão de Limeira e das redações da editoria de cultura da mídia paulistana:
A escrita de Diniz é avessa a formalidades como sua fala, com trejeitos de sala de aula que já devem ter chamado a atenção de quem acompanha seus textos sobre literatura na imprensa, inclusive nesta Folha. Em muitos deles, ela já se dedicava a analisar seus "hominhos".
Sim, Lígia Diniz já se dedicava a analisar seus hominhos antes do livro ora publicado pelo complexo industrial da Companhia das Letras. E uma das vezes em que tentou analisar um hominho aconteceu no ano passado, quando escreveu uma resenha para a revista Quatro Cinco Um sobre o novo livro de Itamar Vieira Jr, Salvar o Fogo.
Mas ao enfrentar o autor de Torto Arado, incensado por 99% da imprensa cultural como o grande autor desta geração, Lígia Diniz recebeu um inesperado contra-ataque. Vieira Jr. a acusou de não ter sensibilidade e, pior, de “pacto da branquitude”, no espaço que a mesma Folha lhe deu para tricotar com seu público diletante:
O pacto da branquitude é implacável. Mesmo quando você não o nota, ele se faz presente. O editor branco escolhe a crítica branca para resenhar um romance atravessado pela raça e pelo colorismo. Eles precisam nos lembrar que na literatura brasileira não há espaço para nós, então o pacto é deixar a avaliação entre eles. Um livro conquistar um bom número de leitores —como ocorreu com "Quarto de Despejo" ou "Torto Arado"— ainda vai, mas dois já é demais.
O ataque não ficou barato. E Lígia Diniz, que diz gostar de ir pra briga por pura pirraça, achou que estava no ringue com um adversário comum. De modo que não deve ter entendido quando, depois de ter publicado uns muxoxos irônicos no Xwitter, recebeu um novo disparo na coluna seguinte de Vieira Jr:
Ligia Gonçalves proferiu ofensas que me tornaram alvo de mensagens de ódio nas redes sociais. Dias depois, publiquei um texto nesta Folha citando de maneira indireta aquela violência, porque esse episódio me recordou um mais antigo, quando um professor branco tentou me humilhar publicamente dizendo que eu tinha os dois pés na senzala, e só vim a entender o significado daquilo muito depois.
Reagi aos tuítes da crítica, e não ao seu texto, que lança dúvidas sobre a capacidade de pessoas negras e mestiças representadas no romance articularem pensamentos mais elaborados, ou ainda que a abordagem das relações sociais e raciais inevitavelmente resvala para o maniqueísmo.
Nota bene: o estagiário não leu o tratado contra o masculino de Lígia Diniz (e nem vai ler). Mas é interessante notar que 1) Diniz gosta de ir para a briga com adversários que não querem lutar contra ela: Porchat, Homero, Aristóteles e Sêneca; 2) Quando aparece um autor hominho que a enfrenta de fato, acusando-a de fazer parte integrante do pacto da branquitude, Lígia Diniz só fecha a conta nas redes sociais e parte para acusar... o homem branco - e assim se salvar do fogo de ser cancelada para sempre.
Em suma: para sobreviver no mundo da cultura diletante e ter um merchã a favor do seu livro, a escritora da pirraça precisou pagar o habitual pedágio ideológico e assim criou um inimigo imaginário. E, ao mesmo tempo, praticou algo mais estranho que a ficção.
Alguém já se perguntou se há uma conexão entre o bruhaha sobre livros como Torto etc., a diarreia verbal dos inteligentinhos (surpreendentemente sempre igual em forma e conteúdo independente do orifício de origem) e o silêncio sobre autores "não engajados" como Tezza?
“Nenhuma mulher jamais sentirá uma dor assim”, disse Pablo Vittar após prender um ovo no zíper !!!