Eu escrevo sobre os meus amigos, Anselmo Gusmão e Paulo Moreira Fernandes, de maneira obsessiva; faço-o porque considerável parte de minha persistente existência sobre a Terra confunde-se com a deles e, portanto, escrever sobre eles acaba por ser um modo menos narcisista de escrever sobre mim mesmo.
Percebi, muito recentemente, que há entre eles uma diferença significativa: Anselmo fuma charutos, mas gosta de livros; Paulo lê muitos livros, mas gosta mesmo é de charutos.
Santo Tomás, se não me engano, disse em uma sua obra (o ente e a essência, também se me não engano) que não somos nem corpo nem alma, mas uma outra coisa resultante do corpo e da alma.
Somos, ao menos de acordo com o Aquinate, algo Paulo e algo Anselmo.
Não suponha, porém, o gentil leitor do NEIM que Paulo seja um sátiro e Anselmo um asceta. Nada mais falso.
Paulo é cultíssimo, tanto quanto Anselmo e, certamente, mais do que eu; Anselmo aproveita os prazeres da boa mesa, menos do que o Paulo, mas, certamente, tanto quanto eu.
Mas voltemos aos charutos e à razão destas linhas. Há alguns meses cedi aos apelos de Luís Felipe, meu sobrinho, e, como Anselmo e Paulo já haviam feito, tornei-me membro de um clube de Charutos chamado Jarvis.
Os charutos chegam-me em periodicidade e quantidades superiores às minha forças pulmonares e, por isso, tratei de arranjar um novo umidor para acondicionar o excedente. Comprei, pela internet, o primeiro modelo que encontrei e, com isso, despertei a ira de Paulo.
Inocentemente, mostrei-lhe, algo orgulhoso, a caixa que eu supunha de cedro. Paulo, visivelmente irritado, acusou-me de ter sido enganado. Dissertou por uma eternidade sobre as propriedades adequadas a um umidor e de como isso influencia os diversos tipos de tabaco.
Com quatro décadas de atraso, súbito percebi que Paulo é um especialista; tem o notável conhecimento e a notabilíssima chatice do especialista. Ele não se contenta em fumar o charuto e beber o vinho; tem de dissecar-lhes a essência, a origem, o fabrico.
Cada charuto, cada taça de vinho, cada especiaria, cada objeto de prazer sensorial, enfim, se converte em objeto de obstinado estudo nas mãos e paladar de meu amigo Paulo Fernandes.
O prazer intelectual que Anselmo extrai dos livros, filmes e peças, Paulo obtém com a autopsia do pato laqueado que jantamos.
Talvez por receio de perder o prazer primitivo que só o instinto é capaz de proporcionar, ao contrário de Paulo, esforço-me obstinadamente por ignorar o máximo possível todas as informações científicas sobre objetos de prazer sensorial.
Limito-me – infantilmente, reconheço – a gostar muito, gostar e não gostar das coisas que como, bebo ou fumo (a despeito da recente decisão do STF, advirto os leitores mais conservadores do NEIM que me refiro exclusivamente aos charutos).
Seja como for, a obstinada preocupação de Paulo com a umidade dos meus charutos rendeu-me um novo e belíssimo umidor, agora sim de cedro.
Quanto a mim, eu realmente não sei se gosto mais dos charutos ou dos livros; sei, entretanto, que gosto de Anselmo e Paulo igualmente.
Nosso domingo fica mais leve com seus textos, Bernardo. E a legião de fãs e novos amigos - por que não? - que você granjeia, sempre cresce. Espero que Paulo e Anselmo não se incomodem
Bernardo conquistou coraçoes por aqui.
Precisa estar no Neim sempre.
Aos domingos entao…
Um balsamo.