Eu confesso. É difícil para mim dar credibilidade a um jornalista que participou do programa dança dos famosos, ainda mais dançando um Cha-Cha-Cha desarticulado com uma exuberante bailarina russa.
Mas passei heroicamente por cima dos meus preconceitos para me devotar a assistir por 2 horas consecutivas, uma das entrevistas mais monótonas da história do jornalismo.
Logo nos primeiros minutos, Tucker Carlson tenta disfarçar um brilho nos olhos que só poderíamos observar no olhar entusiasmado de algum fanático pela Taylor Swift.
Mal passada a primeira hora, depois de ininterruptos 30 minutos do revisionismo histórico em que dei algumas cochiladas, o professor Putin começou a chorar suas pitangas. Diz que a Rússia foi rejeitada no rol das nações civilizadas. Ela foi perseguida, vilenpendiada. Ridicularizaram até o saudoso Boris Yeltsin, apenas porque ele era um bêbado irrecuperável.
Para Putin, a Rússia é uma vítima absoluta das circunstâncias históricas.
Então ele passou a apresentar detalhadamente a sua famosa tese sobre a Ucrânia ter sido criada por Stalin. Depois de mais um ou dois cochilos, fui despertado por uma afirmação categórica do ursinho carinho do Kremlin: “se os EUA querem que a guerra acabe, têm de parar de fornecer armas para os ucranianos. Se fizessem isso, o conflito acabaria em poucas semanas”. E podemos supor que Ucrânia seria varrida do mapa.
Em seguida, com fala mansa e um sorriso psicopata, Putin se põe a propagandear as glórias da industria militar russa. Eles teriam desenvolvido armamentos tecnologicamente superiores a tudo o que a humanidade poderia imaginar. Falou de novas armas hipersônicas, que certamente devem soltar raios escatologicamente coloridos que poderiam nos levar diretamente para o Juízo Final. Como um bom retórico, Putin conseguiu ilustrar com palavras todos aqueles desfiles militares soviéticos com tanques de guerra com problemas de homocinética e mísseis sem espoletas, maquiados para servirem de blefe e evitar conflitos armados mais sérios na época da Guerra Fria.
Mas Putin é inocente. Ele não começou a guerra. Na sua explicação ele deixa claro que a invasão da Ucrânia é, na verdade, uma tentativa desesperada de por um ponto final na violência. Tucker, inebriado pelo charme de seu tirano preferido, decidiu não tocar em assuntos desagradáveis como o sequestro de crianças para “reeducação política” e a condenação por crimes de guerra no Tribunal de Haia.
O jornalista americano resolveu então perguntar se Putin conseguiu o tão sonhado ponto final da violência. Com outro sorriso psicopata, o tirano de Moscou respondeu candidamente: “Ainda não. Antes é preciso desnazificar a Ucrânia”.
A pergunta óbvia a um jornalista com o mínimo de comprometimento com a profissão seria: mas que raios é essa desnazificação? Tucker preferiu evitar a polêmica.
Ele ainda ficou impassivo diante da justificativa de Putin ao infame pacto Molotov-Ribbentrop, e da estúpida afirmação de que Polônia forçou Hitler a iniciar a Segunda Guerra Mundial quando se recusou a ceder o Corredor de Danzing ao demente nazista.
Só no final Tucker teve a ousadia de perguntar se Putin estaria disposto a libertar o jovem repórter do Wall Street Journal, Evan Gershkovich, encarcerado na Rússia sob a acusação de espionagem. “Ainda não”, respondeu o ditador. Foi quando Tucker fez o comentário mais cretino da sua vida: “Mas ele é apenas um garoto que talvez tenha até violado a sua lei, mas todo mundo sabe que ele não é assim um super espião”.
O jornalista americano não aprendeu nada desde a sua participação na dança dos famosos. Continua com seu Cha-Cha-Cha desarticulado, mas desta vez sem a exuberância da bailarina russa.
Em 1984, participando de um painel com George Orwell na Feira do Livro em Frankfurt, discutindo a obra referência daquele ano, Neil Postman aproveitou suas notas da discussão para escrever Amusing Ourselves to Death.
Há muita coisa muito interessante - e sinto que pouco saibamos de suas contribuições. Mas é icônica sua afirmativa:
“Quando uma população se distrai com trivialidades, quando a vida cultural é redefinida com uma perpétua roda de entretenimentos, quando a conversa pública séria se torna uma forma de linguagem infantil, quando, em resumo, um povo se transforma em uma plateia e seus assuntos públicos em um espetáculo de vaudeville, então uma nação se encontra em risco; a morte cultural é uma possibilidade clara.”
Tucker Carlson não tem meu apreço nem minha atenção. Quebrei por alguns minutos minha própria regra - e vi pequenos trechos, porém, sem ter a dedicada paciência do Diogo Chiuso que o fez por conta de seu ofício de nos informar bem.
Evan Gershkovich é repórter do Wall Street Journal
https://www.wsj.com/news/author/evan-gershkovich