#Desordem&Retrocesso
Ao descrever Portugal no século XIX é como se Eça de Queiroz profetizasse sobre o Brasil do século XXI
Do além-vida e do além-mar, Eça de Queiroz ridiculariza o otimismo oficial e burocrático que a imprensa ainda se presta a disseminar.
A farsa que ele denuncia nos serve como luva, não de pelica, mas de boxe.
Um país que enfrenta imensos problemas – com bandidos ocupando cada vez mais espaços e uma nuvem escura de miséria cada vez mais densa sobre a cabeça de todos – opta por pendurar cortinas douradas na casa em ruínas. Repetimos erros com um orgulho soberano.
A sensação de que regredimos é tão necessária, quanto a percepção de que se Portugal conseguiu, de certo modo, afastar alguns de seus fantasmas, também nós, talvez, possamos fazê-lo.
Para isso, precisamos de Eça de Queiroz e de todos que se dispõem a falar com algum grau de honestidade, não importa em que tempo ou espaço.
Abaixo transcrevo partes do texto publicado, em 2 de junho, no Jornal O districto de Évora, no qual Eça, então com 21 anos, foi diretor, editor e redator em 1867. Por 7 meses, ele conduziu o jornal de oposição ao governo, produzindo todas as seções, da primeira à última página, cuidando até mesmo dos anúncios.
Nesse período, o país foi tomado por uma longa discussão sobre a abolição da pena de morte para crimes comuns. A aprovação da proposta foi reconhecida e elogiada internacionalmente. Todos atribuíram a Portugal um relevante papel na defesa de valores humanitários.
Eça de Queiroz não era contra a abolição da pena capital, mas ironizava a hipocrisia eufórica dos governantes que posavam de grandes humanistas civilizadores, quanto na verdade estavam de costas para o orçamento e para a população que vivia na miséria e na ignorância.
Eça de Queiroz - 2 de junho de 1867.
Em Portugal não há ciência de governar nem há ciência de organizar oposição.
Falta igualmente a aptidão, e o engenho, e o bom senso, e a moralidade nestes dois factos que constituem o movimento político das nações.
A ciência de governar é neste país uma habilidade, uma rotina de acaso, diversamente influenciada pela paixão, pela inveja, pela intriga, pela vaidade, pela frivolidade e pelo interesse.
A política é uma arma em todos os pontos revolta pelas vontades contraditórias; ali dominam as más paixões; ali luta-se pela avidez do ganho ou pelo gozo da vaidade; ali há a postergação dos princípios e o desprezo dos sentimentos; ali há a abdicação de tudo o que o homem tem na alma de nobre, de generoso, de grande, de racional e de justo; em volta daquela arena enxameiam os aventureiros inteligentes, os grandes vaidosos, os especuladores ásperos; há a tristeza e a miséria: dentro há a corrupção, o patronato, o privilégio. A refrega é dura; combate-se, atraiçoa-se, brada-se, foge-se, destrói-se, corrompe-se. Todos os desperdícios, todas as violências, todas as indignidades se entrechocam ali com dor e com raiva.
À escalada sobem todos os homens inteligentes, nervosos, ambiciosos, saídos do mundo anónimo da miséria: escritores, dramaturgos, proprietários, poetas, soldados, todos os filhos do acaso e da vadiagem literária, querem penetrar na arena. ambiciosos dos espectáculos cortesãos, ávidos de consideração e de dinheiro, insaciáveis dos gozos da vaidade.
De modo que a governação cai nas mãos inexperientes e frívolas daqueles que nem têm a experiência, nem a filosofia, nem a prática, nem a sabedoria, nem os sistemas, nem os estudos necessários para encetar, com proveitosos resultados, um caminho político de ideias e de concepções.
Em Portugal os homens de Estado não se criam, decretam-se: a Carta Constitucional dá ao rei a faculdade de, com uma assinatura, elevar um homem qualquer, ignorante e nulo, àquela ciência, àquela superioridade de espírito, àquela altura intelectual que pedem as regências públicas.
É uma das coisas mais dolorosamente cómicas do nosso sistema este direito que têm os poderosos da camarilha de decretar grandes homens de Estado.
Toda a ciência, toda a parte, todo o oficio, tem um certo número de princípios, de factos, de conhecimentos, de ideias, de sistemas, de tradições, de bases que é indispensável conhecer. O ter estes conhecimentos práticos e reais, e juntar a isso uma grande inspiração, é o que faz os grandes homens, quer na política, quer na literatura, quer na arte.
Seria ridículo decretar que alguém fosse pintor consumado, artista inspirado, músico glorioso. Porque será então permitido e legalizado pela constituição que se possa decretar que tal ou tal seja grande homem de Estado?
É tão ridículo que vão dizer a um homem: «Manda el-rei, etc., que tu sejas um poeta tão grande como Dante», como dizer-lhe: «Manda el-rei que tu sejas um ministro tão grande como Turgot.»
O que acontece? E que este homem é ministro dum país que não conhece, legislador em circunstâncias que ignora, financeiro sem ter conhecimento da ciência económica e das condições da riqueza pública; afecto aos negócios de justiça, desconhecendo as leis...
Excelentes num sarau literário, são nulos numa crise da pátria.
É assim que há muito tempo em Portugal são regidos os destinos políticos.
Política de acaso, política superficial, política de expediente.
Em presença destes factos é de esperar que durante muito tempo o país vegete na sua sonolência animal; nenhum espírito ousado virá desassombradamente, com consciência e com vontade, com ciência e com moralidade, dar um proveitoso impulso a este caminhar lento e improfícuo.
País governado ao acaso, governado por vaidades e por interesses, por especulação e patronato, por privilégio e influência de camarilha, é possível que possa conservar a sua independência?
Ministros que vivem do apoio da maioria comprada e alcançada a favores, ministros que encobrem a inaptidão com a vaidade, e a nulidade com a declamação, e a sua origem burguesa e obscura com os desperdícios duma oligarquia ostentosa; ministros dependentes dos favores do paço, vivendo duma vida fictícia de apoio e de protecção, inertes, sem ciência e sem energia, aparatosos e frouxos, imperceptíveis e liberais, podem porventura elevar o país?
Em Portugal a grande questão do ministério é a duração: o muito tempo; para isso servem-se de todos aqueles meios que a imoralidade oferece aos maus: não podem viver pelas ideias, vivem pelas maiorias; não ganham apoio pela dignidade e pela atracção espiritual, ganham-no pela corrupção material; não podem constituir a camarilha pela superioridade das suas medidas, conquistam-na pela autorização de desperdícios e por dádivas dos dinheiros públicos; não podem manter-se pelo respeito. mantêm-se pelo medo; não podem conservar-se pela harmonia económica da fazenda, conservam-se por impostos exagerados: não podem viver pela liberdade, vivem pela repressão. Que importa? Durar, conservar-se, viver, gozar; eis a grande divisa do seu brasão comum. Ser ministro para uns é uma vaidade, para outros uma especulação; mais nada: uns ganham, outros resplandecem; alguns há também para quem é vaidade e lucro. Não conhecem que exista o povo, a opinião, o ideal social, as revoluções, a liberdade, a democracia. Basta-lhes saber que são admitidos nos bailes do paço e trazem o cortejo dum correio, e que o seu nome é repetido nas discussões políticas como um som que o ar embala.
Só isso lhes importa.
Vaidosos, precisam uma corte humilde e criam a maioria; avaros, precisam entesourar e fazem os contratos ruinosos; gostam de ser contemplados ainda mesmo num pelourinho moral de repulsão pública e de desgostos. Preferem uma celebridade amaldiçoada a uma serena obscuridade. Amam o poder pelo poder: não encarnam um princípio, uma ideia que queiram realizar; não são homens dum partido; nada de espiritual os leva para ali: arrasta-os aquela fatalidade que quer que os pequenos espíritos vão irresistivelmente para tudo o que luz e para o que soa; tudo sofrem pelo prazer de dominar as desconsiderações, as oposições, os vitupérios, as revoltas.
Sacrificariam populações e famílias para alcançar mais uma medalha que lhes desse foros de grandeza.
Para eles nada significa o trabalho, as privações do povo, os desconsolos das classes operárias; não querem fazer roçar a sua farda por essas misérias.
Espetacular! E ninguém ilustraria melhor o texto que 2 canalhas categoria Premium: Lula $ Geraldo Alckmin
Muito atual para o Brasil de hoje.