#dicionáriocínico: Manual Do Auto Cancelamento
Uma nova coluna do NEIM sobre as palavras da moda que não têm sentido algum
A coluna #DicionárioCínico é uma novidade do NEIM, criada por Ademir Luiz (texto) e Lucas Libanio (imagem), que tem uma única pretensão: a de divertir quem não aguenta mais a cultura woke que (ainda) vigora no Bananão.
Ela será publicada às terças e quintas. Hoje lançaremos o “Manual de Auto Cancelamento”, junto com uma “Introdução Sem Nenhum Cinismo”. Depois, nas semanas seguintes, teremos os capítulos com os verbetes, todos em ordem alfabética.
É bom lembrar que a #DicionárioCínico surgiu do livro Dicionário Cínico das Palavras da Moda, publicado em 2024 pela Editora Bula, que gentilmente nos cedeu o material, junto com o autor. Abaixo, a capa da obra, que você pode comprar nas melhores lojas do ramo:
**
Manual de auto cancelamento
Atualmente, na sociedade pós-moderna líquida, gasosa, insipida e inodora, a humanidade se divide em quatro tipos de pessoas. Quem foi cancelado, quem será cancelado, quem cancela e será cancelado e quem não adquiriu relevância suficiente para ser cancelado. O cancelamento tornou-se questão de status. Só é cancelado quem faz por merecer ou quem cometeu o erro certo na hora certa para parecer que merece. Se antes se dizia que não basta a mulher de César ser honesta, precisa parecer honesta; hoje não basta parecer estar errado, é preciso ser punido em praça pública.
Se seu objeto é entrar para o exclusivíssimo panteão dos cancelados, esse manual é para você. Basta seguir nossos onze mandamentos do auto cancelamento que, em pouquíssimo tempo, poderá gozar das benesses reservadas a essa elite da infâmia.
1º mandamento: fale e escreva sem pensar. Nada é mais prejudicial para pretensões de cancelamento do que ponderação. Quem pensa antes de falar ou escrever jamais ganha manchetes, no máximo recebe tapinhas nas contas. Entre um inofensivo tapinha nas costas e uma facada nas contas opte sempre pela categoria mais dramática, salvo se não estivermos falando de metáforas.
2º mandamento: seja politicamente incorreto. Milan Kundera, o escritor tcheco que sabia o que era bom e morava na França, em seus últimos momentos de lucidez, revelou na forma de literatura a verdade inconveniente de que o termo “politicamente correto” surgiu na corte de Stalin, como forma de não desagradar o próprio baixote bigodudo. Com esse pedigree, boa coisa não deve ser. Uma forma garantida de ser cancelado é desafiar convenções de manipulação da linguagem em prol de objetivos políticos ou politicamente direcionadas. Nenhum cancelador é mais aplicado do que aquele que acredita em uma “causa”.
3º mandamento: defenda que a grama é verde. G. K. Chesterton, no começo do distante século XX, profetizou que chegaria o dia em que precisaríamos defender que a grama é verde. Esse momento chegou, aproveite. Mas não aproveite para ser um monótono arauto da verdade, aproveite apenas para conseguir entrar em debates fundamentais sem precisar estudar muito. O mundo pós-moderno desconstruído lacaniano prega que a grama não precisa mais ser verde. Quem precisa de física, metafísica, hermenêutica ou retórica para defender que essa perspectiva é uma bobagem e ser cancelado por isso?
4º mandamento: transforme-se em um meme. Um meme pode garantir anos de infâmia ou, com pouca sorte, pelo menos os quinze minutos de fama apregoados por Andy Warhol. Obviamente, quinze minutos de fama é melhor do que nenhum. O efeito de um cancelamento pode ser passageiro. O auto cancelado precisa estar consciente de que seus esforços não durarão para sempre. Curta cada minuto dos quinze. Se aparecer o minuto dezesseis o agarre com força pelo rabo de foguete.
5º mandamento: prefira ser odiado a ser amado. Essa variação do pensamento filosófico de Maquiavel tem alimentado carreiras e contratos para presença VIP há décadas. Um hater nunca trai em seu ódio. O amor, como um líquido em tempos líquidos, escapa pelas mãos.
6º mandamento: prefira deslikes aos likes. Um dos maiores erros cometidos pelos participantes da maratona da fama e da infâmia é a obsessão pelos likes. Em outras palavras, pela aprovação. Não raramente, mesmo quem distribui opiniões deliberadamente controversas alimenta o desejo de ser avalizado pela massa. Grande erro. Isso é pregar para convertidos. Likes e deslikes são duas faces da mesma moeda digital. Uma das verdades universais consagradas é a máxima de que “falem mal, mas falem de mim”. Quem fala mal nunca para, quem elogia uma vez, não necessariamente vai mexer um dedo para elogiar uma segunda.
7º mandamento: ria na cara do perigo. Um auto cancelado pode tranquilamente ser uma pessoa medíocre. Qualquer individuo com má intenção suficiente pode chegar lá, ainda que seja em âmbito local, paroquial ou no condomínio. Contudo, um esforço mínimo precisa ser realizado. Desafiar o status quo. Um cancelado é sempre alguém que falou mais do que devia. Não importa se o que falou é certo ou errado. Sabemos muito bem que existem verdades inconvenientes e inconveniências verdadeiras. Se deseja ser cancelado, desafie essas convenções. Sem dor, sem ganho.
8º mandamento: fale a coisa certa na hora errada. A arte do auto cancelamento necessitada de um bom timing. Pouco adianta falar ou escrever algum absurdo sobre um tema sensível que não está na berlinda. Ninguém é sensível o tempo todo com todos os temas. Saiba escolher bem seu alvo.
9º mandamento: não seja ganancioso. Há temas sensíveis para todos os gostos e falta de gosto. Não aborde todos sem critérios. Escolha um, dois ou, no máximo, três e se torne especialista neles. Ninguém leva a sério, e consequentemente cancela, quem ataca tudo e todos sem critério. Vai parecer apenas desesperado para aparecer e não um indivíduo movido por opiniões condenáveis ou falta de noção genuína.
10º mandamento: tenha planejado seu pedido de desculpas. Um discurso longo, choroso e humilhante demonstrando arrependimento será uma rica oportunidade de dividir o público mais uma vez. Muitos vão te acusar de hipocrisia. Outros tantos vão te acusar de covardia. Ser bi-cancelado é sempre uma vitória.
11º mandamento: se recuse a fazer um pedido de desculpas. Empáfia, orgulho, dar uma de senhor da razão ou simplesmente não se importar possui amplo potencial de irritação dos irritados e ofendidos profissionais. A reação ao fato de você não reagir pode gerar uma reação em cadeia de ódio. Mídia espontânea da melhor qualidade. Um novo cancelamento é praticamente inevitável. Ser bi-cancelado, sem fazer nada, é sempre uma vitória maior.
Aproveite as dicas e boa sorte em sua má sorte. Estamos torcendo contra você.
**
Essa INTRODUÇÃO não contém cinismo
“Toda obra-prima literária nada mais é que um dicionário fora de ordem.”
Jean Cocteau
Esse pequeno dicionário cínico das palavras da moda é uma obra “Científica”, com C maiúsculo e entre aspas. Tão séria, acadêmica e cientificamente embasada que poderia perfeitamente ter seu título impresso em latim, com caracteres em itálico. Mas não faremos isso para não parecermos pedantes e também porque nossas tentativas de usar o Google Tradutor para converter o título em latim não foram bem-sucedidas. Ficou parecendo nome de doença venérea e optamos por simplificar. Além de científica também é uma obra que presa pela moral e bons costumes, tradição, família e propriedade, além de lutarmos de forma intransigente pela preservação de todo patrimônio histórico material e imaterial do Vale de Javé e adjacências.
Imbuídos de tal espírito iluminista e conscientes de que o passado vem antes do presente, que por sua vez antecede o futuro, a despeito de já ter passado, fazemos absoluta questão de esclarecermos acerca de quem somos, de onde viemos e para onde vamos.
Antes de tudo, é preciso deixar absolutamente claro que somos um dicionário, com c minúsculo e sem aspas. Seguindo a centenária tradição dos estudos filológicos, nada mais adequado para definir o que é um dicionário do que um dicionário stricto sensu. Para tanto escolhemos o verbete incluso no célebre Dicionário Aurélio, por acreditarmos na lenda de que o lexicógrafo Aurélio Buarque de Hollanda é parente do Chico e, desde a Constituição Cidadã de 1988, tornou-se obrigatório que todos os produtos culturais e artísticos produzidos em solo brasileiro, com exceção do Acre, façam pelo menos uma citação elogiosa ao Chico, sob pena de prisão ou multa.
Portanto, lemos no Dicionário Aurélio Escolar, edição de 1988, da Nova Fronteira, na página 221, a seguinte citação que agora reproduzimos seguindo as normas correntes da ABNT.
Dicionário. S. m. Conjunto de vocábulos duma língua ou de termos próprios duma ciência ou arte, dispostos, em geral, alfabeticamente, e com o respectivo significado, ou a sua versão em outra língua. [Sin., (bras., pop.): pai-dos-burros.]
Assinamos embaixo, menos na parte do “pai-dos-burros” por considerarmos a expressão ofensiva e anacrônica, incondizente com os atuais padrões empáticos e inclusivos da sociedade contemporânea. A despeito desse engajamento bioético, nosso dicionário mantem o tradicional formato de apresentação baseado na ordem alfabética, bem como a necessária incorporação de termos e expressões alienígenas que se encontram de uso corrente no atual estágio do idioma português, que, sim, sobreviveu ao acordo ortográfico e passa bem. Espera voltar ao trabalho em breve.
Há inúmeras possibilidades de organizações racionais de vocábulos. O escritor Alberto Manguel, que foi diretor da Biblioteca Nacional da Argentina, no livro Encaixotando Minha Biblioteca, escreveu que:
Só na minha biblioteca havia dicionários de culinária, de cinema, de psicanálise, de literatura alemã, de astrofísica, de heresias, de formas de endereçamento, de surrealismo, de religião judaica, de ópera, de provérbios e mitos, do Corão, de pássaros do Norte da Europa, de temperos, de Dom Quixote, de termos relativos à encadernação, de Baudelaire, de nuvens, de mitologia grega e romana, de expressões quebequenses, de arte africana, de dificuldades da língua francesa, de santos e de demônios. Existe até mesmo, creio eu, um Dicionário de Lugares Imaginários. (2021, p. 131)
Sim, existe mesmo. Eu tenho. O mundo é mesmo um lugar gigantesco e estranho.
Neste sentido, vale destacar que nosso dicionário se reconhece humildemente como “pequeno”, com p minúsculo e entre aspas. Não espera abarcar todas aspalavras da língua portuguesa, mas apenas àqueles que nosso corpo editorial, formado por profissionais destacados e estagiários sem ficha criminal, identificaram como da “moda”. Entendemos “Moda”, com M maiúsculo e entre aspas.
O conceito de “moda” é bastante controverso e cíclico, muda constantemente, de acordo com a estação. Chegou-se finalmente em um consenso a partir dos esforços de um grupo de trabalho multinacional e interdisciplinar organizado pelos lexicógrafos italianos Domenico Dolce e Stefano Gabbana. Fizeram parte do grupo de trabalho, os filólogos Gianni Versace, Giorgio Armani e Pierre Cardin; os sociólogos Christian Dior e Yves Saint Laurent; e os antropólogos Jacques Leclair e Victor Valentim. Os três volumes resultantes da pesquisa, cada um com cerca de quinhentas páginas, serviu de base para o verbete publicado no Dicionário Aurélio Escolar, página 437.
Moda. S. f. 1. Uso, hábito ou estilo geralmente aceito, variável no tempo, e resultado de determinado gosto, ideia, capricho, e das interinfluências do meio. 2. Uso passageiro que regula a forma de vestir, calçar, pentear, etc. 3. Arte e técnica do vestuário. 4. Maneira, feição, modo. 5. Vontade, fantasia, capricho. 6. Ária, cantiga. V. Modinha (2 e 3). 7. Canção típica do folclore português. 8. Fenômeno social ou cultural, de caráter mais ou menos coercitivo, que consiste na mudança periódica de estilo, e cuja vitalidade provém da necessidade de conquistar ou manter uma determinada posição social. 9. Estat. Numa distribuição de frequência, valor da variável que corresponde a um máximo.
Chamamos atenção para definição 8, que incorpora um inegável elemento de denúncia sociocultural. Notem, se há nestas palavras da moda um caráter “coercitivo, que consiste na mudança periódica de estilo, e cuja vitalidade provém da necessidade de conquistar ou manter uma determinada posição social”, fatalmente existe a necessidade de expor tais condições opressivas, ainda que seja por meio do cinismo.
Forçoso reconhecer que o cinismo advém de uma longa tradição filosófica, como mostra esse mesmo Dicionário Aurélio Escola, em sua página 151.
Cinismo. S. m. Hist. Filos. Doutrina e modo de vida dos cínicos, partidários dos filósofos gregos Antístenes de Atenas (444 – 365 a. C.) e Diógenes de Sinope (413 – 323 a. C.), fundadores da escola cínica, que se caracteriza principalmente pela oposição radical e ativa aos valores culturais vigentes, oposição nascida do discernimento de que é impossível conciliar as leis e convenções morais e culturais com as exigências de uma vida segundo a natureza.
Lembrando que Diógenes morava dentro de um barril e comportava-se como um cão, sendo uma possível inspiração para o personagem Chaves, de Roberto Gómez Bolaños. Por outro lado, Antístenes nunca trabalho no SBT e ficou conhecido por filosofar acerca do problema da tautologia inerente as definições. Dizia que “eu vejo um cavalo, porém a qualidade inerente a todos os cavalos, eu não vejo”. De igual forma, se vejo um cínico, ou um dicionário, não vejo todas as qualidades inerentes a todos os cínicos nem a todos os dicionários, seja o mesmo cínico ou não.
Portanto, o “Cínico”, com C maiúsculo e entre aspas, é o praticante do cinismo filosófico, que desafia o senso comum e o status quo. Esse é o escopo almejado por nosso “Pequeno Dicionário Cínico das Palavras da Moda”, que ocupa suas mãos em seu formato anatômico e peso equilibrado. Trata-se de um libelo contra a coesão da moda que impede que a natureza das coisas flua.
Reconhecemos que pertencemos a uma longa tradição bibliográfica iconoclasta, que passa pelos verbetes humorísticos publicados na Revista Mad, o humor involuntário do Abecedário de Gilles Deleuze e o Dicionário da Asneira e Livro dos Bizarros, escrito à quatro mãos por Guy Bechtel e Jean-Claude Carrière, onde se expõe a curiosa regularidade com que “especialistas” cometem erros bizarros em outras áreas de atuação ou mesmo em seu campo de especialidade. Também contribuiram os célebres Dicionário de Borges e Waaal, O Dicionário da Corte de Paulo Francis, no qual estão selecionadas frases e observações argutas dos autores títulos.
À guisa de exemplo, dissertando sobre moda, Jorge Luis Borges observou que “o comércio fabricou a crença geral de que a cada ano devemos nos vestir de um modo um pouco diferente” (Stortini, 1986, p. 144). Frase aparentemente simples, mas que ganha conotação cínica quando observamos que foi expressa por um homem que usou terno e gravata a vida toda, em todos os lugares e climas.
Paulo Francis, outro cultor do traje social completo, definiu “moda” da seguinte forma: “Sem dúvida, qualquer roupa ou acessório ajuda a compor deduções que fazemos sobre a pessoa. As gravatas, por exemplo, estão na linha de frente da personalidade” (Piza, 1996, p. 184).
As gravatas e o vocabulário, como parece claro por meio de nosso levantamento lexicográfico.
Também é inegável a influência do livro O Melhor do Mau Humor – Uma Antologia de Citações Venenosas, no qual Ruy Castro recolheu na forma de verbetes centenas de frases definidoras, e cínicas, das mais diversas personalidades da cultura e política, sobre os mais diferentes temas, incluindo “moda” e “cinismo”.
O esteta profissional Oscar Wilde, talvez em um momento de fraqueza, afirmou que “um cínico é um homem que sabe o preço de tudo e o valor de nada”. Essa definição contrasta com a de George Bernard Shaw que escreveu: “o poder de observação acurada é geralmente chamada de cinismo por aqueles que não o possuem” (Castro, 1989, p. 28). Valeria uma epígrafe.
O mesmo Oscar Wilde, voltando à boa forma, escreveu que “a moda é uma variação tão intolerável do horror que tem de ser mudada de seis em seis meses”, enquanto Fran Lebowitz observou: “seja realista. Se as pessoas não estão interessadas no que você tem a dizer, por que estariam interessadas no que sua camiseta está dizendo?” (Castro, 1989, p. 84).
Reparem a correlação onipresente entre o que se veste e as opiniões nas quais se traveste, ambas com o mesmo objetivo de obter aceitação social.
Por falar em aceitação social, lembremos da célebre frase do maior inventor de palavras da língua inglesa, William Shakespeare: “O Príncipe das Trevas é um cavalheiro”, da peça Rei Lear, ato III, cena IV. Todo príncipe que se preza precisa de um porta-voz. Esse foi o jornalista, editor, aventureiro e escritor Ambrose Bierce, autor de nossa maior influência: O Dicionário do Diabo.
Bierce compilou ao longo de vinte e cinco anos os verbetes e poemas que formariam seu “Dicionário”, um dos livros mais hilariantes de todos os tempos. Algumas vezes assinava com o pseudônimo John Satan, o que mostra que nem sempre procurava ser sutil. Os primeiros verbetes apareceram em 1881, publicados esparsamente em diferentes jornais. Uma primeira seleção de verbetes foi publicada em 1906, com o título Vocabulário do Cínico. Cinco anos depois, em sua forma final, saiu com o título diabólico clássico.
Curiosamente, Bierce não aprovava dicionários. Justamente por isso, em seu livro há um verbete que define a palavra dicionário da seguinte forma: “Maligno instrumento literário para limitar o crescimento de um idioma e torná-lo duro e inelástico. O dicionário, contudo, é uma obra muito útil” (2018, p. 79).
Movido por essa perspectiva, atribuiu esses escritos ao próprio Diabo, que estaria zombando das pretensões e hipocrisias humanas. Cinismo é a melhor palavra para definir verbetes como “crítico: pessoa que se vangloria de ser difícil de agradar porque ninguém tenta agradá-lo” (Bierce, 2018, p. 70) ou “lixo: material sem valor, como religiões, filosofias, literaturas, artes e ciências das tribos que infestam as regiões ao sul do Polo Norte” (Bierce, 2018, p. 162).
Ambrose Pierce teve um fim misterioso. Desapareceu em 1914, enquanto cobria as ações dos rebeldes liderados por Pancho Vila, durante a Guerra Civil Mexicana. O paradeiro de seu corpo é um dos grandes mistérios da história americana. Talvez um cínico perguntasse: “procuraram no mesmo lugar onde esconderam Jimmy Hoffa?”. Outro cínico lembraria o final do primeiro volume de Fausto, de Goethe. Quem vai com Ele, não volta.
Seja como for, como ensinou Baudelaire, “o truque mais esperto do Diabo é convencer-nos de que ele não existe”. Nestes casos, alguém sempre assume a pena. Neste espírito endiabrado, esse humilde e breve compilado de palavras da moda é, também, uma homenagem ao desaparecido Ambrose Bierce. Quero acreditar que se estivesse produzindo hoje, talvez, as incluísse em uma nova edição, revista e ampliada, de seu possesso dicionário.
Ambrose Bierce foi um erudito, mas também um homem de ação. Lexicógrafos não são apenas homenzinhos corcundas, por tantas horas passadas debruçados em seus escritos, e de visão ruim.
Os dicionaristas são criaturas surpreendentes que, acima de tudo, sentem prazer nas palavras. Apesar da definição do dr. Samuel Johnson de que um lexicólogo é um “chato inofensivo”, eles são notavelmente obsessivos e não se importam com sutilezas sociais no que se refere à sua tarefa fundamental. Veja-se o caso de James Murray, principal editor do grande Oxford English Dictionary, que, durante muitos anos recebeu milhares de notas sobre os primeiros usos de palavras ingleses enviadas por um cirurgião norte-americano que vivia na Inglaterra e com quem ele jamais se encontrara, até descobrir, com esplêndida indiferença que seu colaborador, além de talentoso pesquisador, era também um assassino clinicamente insano que residia no manicômio judiciário de Broadmoor. (Manguel, 2021, p. 124).
Voto com o relator no que se refere a esse pequeno dicionário ter sido feito por um “chato inofensivo”, eu; ao mesmo tempo que faço votos de que não tenha que fazer o caminho inverso do colaborador de James Murray. Por enquanto, estou livre. Em mais sentidos do que convêm em tempos politicamente corretos, tempos que combatem o cinismo como se crime fosse.
Não que esse combate às verdades cínicas seja um fenômeno necessariamente novo. Ainda no século XIX, o próprio Dicionário do Diabo definiu cínico da seguinte forma: “um canalha cuja visão defeituosa vê as coisas como elas são, não como devem ser. Daí o costume dos sicilianos de arrancar os olhos do cínico para melhorar sua visão” (2018, p. 59).
Disse Ambrose Bierce. Ou terá sido o Diabo em pessoa?
Referências
BIERCE, Ambrose. Dicionário do Diabo. São Paulo: Carambaia, 2018.
CASTRO, Ruy (Org.). O melhor do mau humor – uma antologia de citações venenosas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
DICIONÁRIO AURÉLIO ESCOLAR DA LÌNGUA PORTUGUESA. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.
MANGUEL, Alberto. Encaixotando minha biblioteca – uma elegia e dez digressões. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
PIZA, Daniel (org.). Waaal– O dicionário da corte de Paulo Francis. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
STORTINI, Carlos R. (org.). Dicionário de Borges. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1986.
[Na próxima quinta, começam os verbetes]
**
Ademir Luiz é doutor em História que escolheu a profissão porque era fã do Indiana Jones. Pós-doutor em Poéticas Visuais e Processos de Criação, seja lá o que isso signifique, medievalista sazonal, especialista na Ordem dos Templários, criador da Teoria da Conspiração que transformou a Vila do Chaves em uma visão do inferno de proporções dantescas, aluno do Padre Quevedo, foi exorcizado na Igreja Universal do Reino de Zeus. Escreve romances, contos, ensaios e quadrinhos, mas nunca durante a possessão.
Lucas Libanio é cartunista, ranzinza e antiquado. Desenha, junta tralha e tenta criar sua filha. O resto é detalhe - exceto seu Substack, que o leitor deve visitar com urgência aqui.
Fantástico! Precisamos celebrar essa iniciativa, de leveza e bons risos, agora com o Lucas colocando de vez a mão na massa. Frequente na baixa câmara, trazendo bons pitacos em comentários com muito ... diria 'Sentido!' soma agora sua vasta experiência de sofrimento ao ter convivido com muito artista e pelego wokenista, para dar mais uma baforada da safra do não é politicamente corrento. Bem-vindos, Ademir Luiz e Lucas Libanio!
Grande estreia! Parabéns 👏🏻👏🏻👏🏻
Dicionário mais do que necessário!