Carreira sem sentido
“Pensei que nunca pegaria. É um termo terrível. Quadrinhos não são novelas; na verdade, a maioria delas são memórias. ‘Gráfico’ sugere uma novela ilustrada; mas quadrinhos não são isso. Pensava que as pessoas diriam ‘é um gibi, porque você está tentando nos enganar?’. Mas funcionou: ‘Novela gráfica’ agora significa algo que é bem específico. Pessoas escutam essas duas palavras e entendem elas como um tipo de livro, normalmente com razão. Desisti, funcionou. Os caras que criam rótulos ganharam”.
Daniel Clowes, em entrevista para a Mother Jones.
Podemos afirmar com razoável certeza que Monica, a mais recente obra de Daniel Clowes, é uma graphic novel que existe.
Mas é aí que acabam as certezas: Graphic novel, ou novela gráfica, como você que leu o ensaio sobre a hq A Bomba deve lembrar, é um formato intrinsecamente contraditório: quadrinhos lançados por editoras de livros, ou por editoras de quadrinhos que querem emular editoras de livros, que incorporam elementos de arte alternativa e anti-comercial para se dirigir a um público mais amplo, de interesses mais literários (ou pelo menos mais presunçosos) e, em tese, conformista e comercial.
A carreira de Clowes é um mapa que nos mostra como esses caminhos, aparentemente divergentes, se cruzaram. Clowes iniciou a sua carreira na Cracked, a revista de humor satírico no estilo da Mad de maior sucesso. Ou seja, é uma revista de humor escroto e derivativo, e eu digo isso com a maior admiração.
No entanto, no mesmo ano, 1985, publicou uma história curta na revista Love & Rockets n. 13. Criada pelos irmãos Hernandez, Gilbert, Jaime e Mario, a Love & Rockets foi a principal revista da onda de quadrinhos alternativos americanos nos anos 80 – quadrinhos que existiam em oposição às editoras que eram consideradas mainstream, Marvel e DC, que publicavam basicamente gibis de super-heróis. Trata-se do período em que as hqs se consolidaram como leitura válida para adultos, e a Love & Rockets tem grande mérito nesse processo: não por acaso, Gilbert e Mario também se reinventaram como autores de novelas gráficas.
Depois da Love & Rockets, Clowes lançou duas revistas próprias. Primeiro, a Lloyd Llewellyn (seis edições, entre 1986 e 1987). Depois, a Eightball, uma antologia de histórias curtas que publicou 23 edições entre 1989 e 2004 e tornou Clowes o principal quadrinista alternativo dos anos 90. A Eightball é uma dessas revistas que consegue capturar o espírito de sua época, com as suas histórias paranoicas, ansiosas, emocionalmente distantes e extremamente irônicas, unidas pela brilhante capacidade de Clowes de retratar piedosamente o tumulto psicológico interno de seus protagonistas.
O seu sucesso extrapolou o mundo dos quadrinhos: no início dos anos 90, trabalhou para a Coca-Cola no lançamento da Ok Soda, refrigerante que tinha por alvo a Geração X. Produziu a animação do clipe da versão dos Ramones da música “I Don't Want To Grow Up” em 1994. Ilustrou o pôster do filme Felicidade, de Todd Solondz, em 1998. Escreveu o roteiro para a adaptação para o cinema de Ghost World, dirigida por Terry Zwigoff e protagonizada por Tora Birch e Scarlett Johansson, em 2001. Era o início de uma outra carreira, agora no cinema: Clowes também escreveu a adaptação de outra hq sua, Art School Confidential (título que, no Brasil, recebeu uma tradução involuntariamente hilária: “Uma Escola de Arte Muito Louca”), também dirigida por Zwigoff, em 2006, e de Wilson, a sua primeira novela gráfica original, dirigido por Craig Johnson, protagonizado por Woody Harrelson, e lançado em 2017. Desde então, Clowes já foi vinculado a projetos de Michael Gondry e Jack Black.
Mas foi Ghost World, o filme, que lhe garantiu acesso ao hall da fama e da respeitabilidade, onde se servem quitutes de camarão, e às capas da The New Yorker (downside: também a ser plagiado por Shia LaBeouf em um curta metragem lançado em 2013). O filme ganhou o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado em 2002. Menos de dez anos antes, Clowes estava publicando histórias como The Sensual Santa (Eightball n. 14, de 1994). When I see the price you pay, I don’t want to grow up: em entrevistas Clowes costuma comentar o seu desinteresse em uma carreira cinematográfica, tanto pelas peculiaridades intrínsecas do mercado, quanto pela natureza colaborativa da linguagem.