#EntreGolpes
Segundo análise do Wall Street Journal, o Brasil vive um golpe institucional inspirado no modelo chavista
Há momentos em que parece que precisamos dedicar mais energia para evitar parecer petista ou bolsonarista do que para enfrentar o que vemos diante dos próprios olhos. As instituições – tomadas, aparelhadas e prestes a serem inutilizadas, cada vez mais distantes de qualquer coisa parecida com um Estado de Direito –, ficam desfocadas diante de tanta purpurina lançada por quem se sente um grande vencedor numa terra arrasada.
Golpes não se fazem com uma dúzia de conspiradores trocando minutas. São construções coletivas e não desvios pontuais e delirantes. Além da mobilização social, é necessário força institucional favorável e uma narrativa forte capaz de sustentar a ruptura. Bolsonaro não contava isso. Com uma equipe de transição que foi autorizada a trabalhar pelo próprio Bolsonaro e uma invasão desarmada a um prédio público vazio num domingo, chamar esse quadro de golpe talvez seja o próprio golpe.
Além da inviabilidade estrutural, de acordo com a lei, até agora não há nem como afirmar, com segurança, que houve a tentativa do golpe, pois ainda há mais controvérsias do que evidências sobre o início da execução.
Não foi por falta de vontade que não aconteceu, nem porque foi impedido por Alexandre de Moraes e sua longa capa. Foi por falta de estrutura e apoio. No STF todos devem saber muito bem disso. Golpes não se medem pelo desejo de quem os tenta, mas pela capacidade de realizá-los. E a ressalva é necessária: isso não significa que o interessado na ruptura, que teve sua intenção frustrada, estava “jogando nas quatro linhas”.
O golpe de 1964, por exemplo, ainda é relativizado por muitos justamente porque contou com respaldo expressivo da sociedade, sobretudo da imprensa e do empresariado, todos mobilizados pelo medo do comunismo. O judiciário não foi protagonista na época, foram os militares. Já hoje, o medo é outro, os métodos são outros, mas o apoio ainda é necessário. Bolsonaro tentou reunir essa sustentação e fracassou. Lula, por outro lado, está tendo o sucesso que provavelmente sempre sonhou.
Ainda sob o rótulo de “frente ampla”, está se consolidando um golpe bastante visível, iluminado pelas câmeras da imprensa. Não é uma suposta “trama golpista”. São ações muito bem coordenadas que, à semelhança do chavismo, usam as instituições democráticas para sufocar a própria democracia. É esse fenômeno que Mary Anastasia O’Grady enxerga no Brasil, conforme revelou em seu recente artigo no Wall Street Journal.
No texto publicado em 10 de agosto, para tratar do STF, O’Grady começa com uma comparação direta com o chavismo. As ditaduras modernas não tomam o poder por tanques, mas por meio da captura das instituições democráticas – como fez Hugo Chávez na Venezuela. Ela cita o exemplo recente de Bukele, com seu próprio modelo de chavismo, que agora controla o tribunal eleitoral e alterou a Constituição para permitir sua própria reeleição para sempre.
Essa é a chave para entender a atuação de Alexandre de Moraes, segundo O’Grady: não se trata de uma ruptura explícita, mas de uma erosão sistemática da democracia por dentro.
Moraes aparece como figura central na repressão a opositores de Lula. O’Grady denuncia que ele tem usado o STF para perseguir críticos, censurar vozes dissidentes e prender pessoas sem o devido processo legal. Ela destaca que essa atuação não é isolada, mas parte de um padrão que se assemelha ao chavismo. Com o Judiciário sendo instrumentalizado para consolidar poder.
Em artigo do dia 27 de julho, O’Grady relatou o caso de Filipe Martins, que foi falsamente acusado de ter entrado nos EUA em uma data incompatível com registros oficiais. Mesmo após o Departamento de Segurança Interna dos EUA reconhecer o erro e remover o registro falso, ele reapareceu misteriosamente. O’Grady questiona a detenção de Martins que aconteceu e foi mantida com base em registros falsos do Departamento de Alfândega e Proteção de Fronteiras dos EUA (CBP). Nem a remoção do registro falso e o fato do CBP reconhecer o erro, convenceu Moraes. Filipe Martins passou 6 meses preso com base só nesse registro. Agora, usa tornozeleira, não pode dar entrevistas e se apresenta semanalmente à Justiça, ainda sob a alegação de risco de fuga.
O’Grady aponta que não há explicação oficial para a criação do registro falso e que ele serviu convenientemente para sustentar a narrativa da acusação. Por aqui, ouvimos jornalistas, como Eliane Cantanhede, justificar mais ou menos assim: Moraes sabe muito bem o que faz e tem razões que não podem ser reveladas... Razões que não estão nem nos autos do processo.
E novamente, é necessária a ressalva: O’Grady não está defendendo Bolsonaro, mas sim denunciando o uso autoritário das instituições contra qualquer oposição. Se Moraes fez isso com Filipe Martins, pode fazer com qualquer pessoa. Ela argumenta que, independentemente da opinião sobre Bolsonaro, o que está em jogo não é preferência ideológica.
Ninguém defende a democracia desviando sistematicamente de leis e procedimentos; a democracia se defende agindo como democrata e não como autocrata, ditador ou tirano. E quanto mais repetem, em tom solene, os supostos objetivos democráticos, mais evidente se torna a necessidade de recorrer à narrativa, porque falta a materialidade das ações. Quando não se pode convencer pelos fatos, tenta-se convencer pelo discurso.
Nesse sentido, o da valorização da narrativa como forma de se manter no poder, quem acompanha a política nacional há mais de 20 anos sabe que esse sempre foi o projeto do PT. O comportamento atual de Lula, que muitos dizem ser mais agressivo e centralizador, em nada contrasta com o passado. É a continuação de um projeto. O PT nunca apresentou um plano de país, apenas um plano de poder. Quem se pergunta por que Lula parece diferente agora – ou atribui à sua esposa a mudança – esquece que o desmonte institucional começou ainda nos seus primeiros mandatos. Será que essas pessoas que nunca ouviram falar de José Dirceu?
O mensalão foi o primeiro marco importante. Mesmo após o escândalo, Lula saiu ileso. O STF continuou como se nada tivesse acontecido e Lula continuou a ser tratado como “democrata”, mesmo delinquindo muitas outras vezes. Isso não poderia gerar nada além de rejeição da população ao judiciário e, até mesmo, à democracia. Afinal, se justiça é descondenar bandidos e democracia é o que o PT representa, ninguém deveria se espantar com a adesão das pessoas à defesa de intervenção militar e com a revolta contra o STF.
Quando as pessoas pedem intervenção militar ou divina não estão clamando por opressão, mas reagindo à opressão que já sentem: a de um sistema que protege o marginal e pune o cidadão comum. O exemplo de Bukele é perfeito neste ponto. Muitos salvadorenhos consideraram ótimo que ele se perpetue no poder. Muitos brasileiros concordam. “O importante mesmo é que o país está melhor e as pessoas se sentem seguras”. “Por que não manter no poder quem fez tanto bem à população?” Se a tirania vier com ordem e pão, será sempre bem recebida por qualquer povo. O que cabe perguntar é: aquele que hoje é aclamado pelo povo pode se manter popular por quanto tempo? Sem instituições, amanhã esse mesmo povo não poderá se tornar refém do mesmo homem que ontem o libertou?
Lula não chegou até aqui sozinho e delirante. Lula não tem a seu lado uma espontânea mobilização popular, mas nesses anos todo, o PT formou um exército com movimentos sociais e sindicalistas. Até a OAB, hoje, se curva a Lula. Universidades e imprensa, nem há mais o que falar. Ou seja, quem poderia ter capacidade de fazer questionamentos conceituais e de longo prazo, nas universidades e na imprensa, está insistindo na ideia de que o STF está fazendo um grande papel institucional e Lula é um democrata.
Nova ressalva: compreender esses aspectos dessa perspectiva, não significa justificar ou concordar com as práticas usadas para demonstrar a revolta, nem pedir a revolução... É só uma forma de interpretar o caos.
Nem de longe, também, significa negar o valor das narrativas ou da subjetividade. Pelo contrário, é reconhecer que subjetividade e materialidade não se divorciam. Qualquer projeto político que tente separá-las está fadado a gerar crise, descrença e revolta. Talvez seja justamente essa tensão entre o que se diz e o que se vive que torna a democracia, apesar de tudo, ainda o melhor que temos. Porque, de certo modo, ela requer que discurso e realidade eventualmente se encontrem, e que o poder seja constantemente confrontado com a experiência concreta da população.
Muito bom! “Ninguém defende a democracia desviando sistematicamente de leis e procedimentos”. Parece bem óbvio, mas o país vive um surto coletivo, a elite “pensante” não consegue (ou não quer) enxergar. Já dizia Nelson Rodrigues: “gênio, santo ou profeta é aquele que enxerga o óbvio”.
Excelente. Sinceramente a melhor análise que li sobre o "golpismo" atual. Uma pena que o estopim dessa análise tenha sido o artigo de O'Grady no WSJ. Muitas vezes a visão de fora contribui em muito para melhor entendimento da situação.