I.
Os últimos anos têm sido surpreendentes. Um filme da franquia PREDADOR está no centro das discussões sobre cinema e cultura, algo que, em vida, eu nunca vi. Preciso dizer que entrei em contato com o personagem e a franquia antes dos dez anos de idade, nesse ponto os filmes já eram meio antigos. Eu os amei incondicionalmente, e os amo até hoje. Mas, com o passar dos anos, PREDADOR, a franquia, foi ficando cada vez mais com o status de relíquia, filmes de sucesso que pertencem a outro tempo. Nem mesmo com o lançamento dos péssimos Alien vs Predador (Alien vs Predator, 2004, de Paul W. S. Anderson) e Aliens vs Predador 2 (Aliens vs Predator: Requiem, 2007, dos irmãos Strause) a franquia voltou para o centro do debate. O lançamento morno de Predadores (Predators, 2010, de Nimrod Antál) e o fracasso em todos os sentidos de O Predador (The Predator, 2018, de Shane Black) tampouco chegaram perto de suscitar o interesse do público. Prey parece ter se tornado um fenômeno cultural na internet, batendo recordes de exibição na plataforma Hulu e Star+. A recepção, tanto por parte da crítica especializada quanto por parte do público tem sido extremamente positiva, com muitos afirmando que o filme não só é a melhor continuação (discordo dessa opinião, como o leitor pode atestar em minha coluna sobre o segundo filme) como é até mesmo melhor que o original, o que também acho um exagero. Mas isso não significa que Prey seja um filme ruim; muito pelo contrário. O filme de Trachtenberg é supreendentemente bom, e possui uma série de conceitos e propostas que são novos para a franquia PREDADOR, e tudo isso feito com um domínio técnico notável.
Central para o conceito da franquia é a ideia da caçada. No caso, do jogo da caça. Os irmãos Jim e John Thomas, roteiristas dos dois primeiros filmes e criadores da série, se inspiraram na clássica história de Richard Connell, Zaroff: o jogo mais perigoso. Publicada em 1924, nela acompanhamos um conde sádico e cruel chamado Zaroff, que é um exímio caçador. Tendo já vencido todas as criaturas mais perigosas da Terra, só lhe resta uma única criatura que merece ser caçada, a mais perigosa de todas: o ser humano. Homens são levados até a sua ilha particular, coberta por uma selva densa, e lá participam de um jogo mortal com o conde. É um conceito simples, mas fascinante, e isso se mostra pelo volume imenso de adaptações que a história de Connell teve ao longo dos anos, tanto no cinema quanto no rádio, em histórias de quadrinhos e videogames. Para ficarmos somente no cinema, temos, entre as de maior destaque: Zaroff, o caçador de vidas (The Most Dangerous Game, 1932, de Ernest B. Schoedsack e Irving Pichel); A Fera Humana (A Game of Death, 1945, de Robert Wise); Dois Destinos se Encontram (Run for the Sun, 1956, de Roy Boulting); O Alvo (Hard Target, 1993, de John Woo, e estrelado pro Jean Claude Van Damme); O Peste (The Pest, 1997, de Paul Miller, filme de comédia pastelão com John Leguizamo); A Caçada (The Hunt, 2020, de Craig Zobel); por fim, Jogo Perigoso (Most Dangerous Game, 2020), que começou como série de TV do canal CBS, mas foi lançado em outros países, como o Brasil, como um longa-metragem, disponível plataforma Amazon Prime Video, e tem em seu elenco Liam Hemsworth e Christoph Waltz. E essas são só algumas das adaptações diretas, e podemos ver que quase todas as décadas, a partir da primeira adaptação de 1932, trazem a mesma história com recontextualizações e atualizações.
Isso por si só é testamento da força do conceito de Connell. Até mesmo Bacurau (2019, de Kléber Mendonça Filho) contém elementos da história original. PREDADOR, ainda que não seja uma adaptação direta da história de Connell, é obviamente fortemente inspirado no molde narrativo do conto de 1924. Eu diria inclusive que a força do primeiro é em justamente pegar uma trama familiar, mas modificando-a suficientemente, trazendo novos elementos fascinantes (o contexto do cinema de ação dos anos 80, o Predador em si, etc), que fizeram o primeiro filme ser um ícone cultural do cinema dos anos 80, e um que não envelheceu nem um pouco. Mas o interessante é que esse não é exatamente o foco da história de Prey.
Ostensivamente, o filme lida com a caça, tal como os outros da franquia. A tribo Comanche empreende uma caçada no começo do filme; o Predador veio até a Terra para caçar; e os mercadores de peles franceses estão naquela região caçando animais para o seu comércio. Mas isso é um aspecto superficial da trama, por que o foco de Trachtenberg não é na caçada, no jogo perigoso, mas sim na jornada de Naru (Amber Midthunder), a jovem caçadora e guerreira da tribo. Dutch (Arnold Schwarzenegger), assim como Mike Harrigan (Danny Glover) e Royce (Adrien Brody) podem ser os heróis que derrotam o Predador ao final de seus respectivos filmes, mas o foco desses filmes é no grupo de personagens, que vão sendo mortos um por um pelo alienígena. Isso não ocorre em Prey. Desde o começo o foco do filme de Trachtenberg é em Naru e em sua jornada. E essa não é uma jornada qualquer; é um Rito de Passagem, e o filme deve ser compreendido dessa categoria.