#GênioOuLouco(2)
A partir de diferentes percepções sobre o fenômeno Trump II, o desafio permanece: como compreender o mais imprevisível dos presidentes americanos.
Trump é um gênio ou um louco?
O objetivo desta minissérie de artigos é tentar decifrar o complexo processo executivo da nova temporada de Trump na Casa Branca. Como prometido em campanha — e já parcialmente cumprido —, a jornada do planeta Terra, agora sob o comando de Donald Trump, promete ser turbulenta e repleta de sobressaltos. Diante de decisões que, em pleno 2025, soam cada vez mais desconexas e descoladas da realidade, vejo-me em permanente estado de alerta. E parece que não estou sozinho.
Para compreender melhor esse cenário, busco a ajuda de analistas e observadores que, em sua maioria, estão à margem do chamado mainstream. Suas visões complementares ajudam a romper com a polarização simplista, amor ou ódio, tão comum diante de figuras poderosas e controversas.
Um desses nomes é Robert D. Kaplan, considerado pela revista Foreign Policy um dos cem maiores pensadores globais. Kaplan é autor renomado, com profundo conhecimento em relações internacionais, história e política global. Em janeiro deste ano, lançou sua mais recente obra, Waste Land – A World in Permanent Crisis (Terra Devastada – Um mundo em crise permanente, em tradução livre).
Em uma conversa no Conway Hall, em Londres, com a casa cheia, Kaplan foi entrevistado por Alec Russell, editor internacional do Financial Times. A íntegra está disponível no canal Intelligence Squared, um podcast de entrevistas que pode ser assistido aqui.
Na noite de 2 de abril, enquanto seus colegas preparavam a edição do day after ao tarifaço, Russel tirava proveito da presença de um pensador de peso em geopolítica, para entender como será a Casa Branca com Trump 2.
Sobre o mundo anárquico
Instigado a explicar o título de seu livro (Waste Land), e como a política atual lida com os desafios de evitar uma crise social de grandes proporções, Kaplan responde*:
Sim, estou sugerindo [que a política mundial está em uma crise maior agora do que antes]. Em primeiro lugar, por causa da tecnologia, nós não temos um governo mundial ou uma governança global, mas temos um sistema mundial que está emergindo. E, nesse sistema, uma parte pode influenciar a outra como nunca antes. Então, é um sistema, de certo modo. E acredito que a globalização, que todos aplaudiram com entusiasmo nos anos 1990, acabou dividindo os países ao meio em vez de uni-los.
Nos EUA especialmente, mas também no Reino Unido com o Brexit, na Hungria e em outros lugares, vemos uma situação em que uma parte da população — você pode escolher a porcentagem — foi absorvida por um mundo globalizado, de classe média alta, que bebe vinho fino e onde os amigos e colegas ao redor do mundo são emocionalmente mais importantes do que as pessoas do próprio país. E a outra parte da população simplesmente foi deixada para trás, por uma série de razões. Acho que essa é a vingança da globalização, e isso faz parte da explicação para o fenômeno Trump, para o Brexit e para coisas do tipo.
No calor das notícias vindas de Washington, Russell quer saber de Kaplan se é possível terminar com a globalização.
Acredito que a globalização é, no fim das contas, inexorável. Ela precisa continuar porque é impulsionada pela tecnologia, e a tecnologia conectou as pessoas emocional e politicamente de uma forma que terá seus altos e baixos, seus retrocessos. Talvez estejamos em um momento de retrocesso agora, mas que, inevitavelmente, ela vai continuar cada vez mais.
Surpresas com Trump 2.0
Kaplan comenta sobre o ritmo acelerado do novo mandato:
Não fiquei tão surpreso assim [com a velocidade com que o governo Trump começou a desmontar o que ficou conhecido como a ordem liberal do pós-1945], porque ele viu o primeiro mandato como uma oportunidade desperdiçada. [À época] ele não esperava derrotar Hillary Clinton. Não tinha equipe, não fazia ideia do que ser presidente exigia — logisticamente, burocraticamente, etc. Desta vez, ele chegou muito mais preparado. E, com uma equipe grande, e então você pode fazer qualquer coisa.
Ou seja, ele mesmo não está fazendo tudo isso todos os dias, os novos decretos, as prisões, as deportações. [Quem está fazendo é] sua equipe e grupos associados. Eles estão propondo todas essas ideias e colocando-as em prática porque sabem o que ele quer. Ele deixou isso muito claro. E o efeito é o de uma explosão contínua de iniciativas.
Sua equipe está muito mais preparada desta vez. Eles contaram com a Heritage Foundation, todo um think tank dedicado exclusivamente a escrever o que Trump deveria fazer na primeira semana, na segunda, no primeiro mês, no segundo mês. E isso se nota, a preparação aparece. É por isso que todos ficamos tão chocados.
Russel observa, visivelmente perturbado pela forma e estilo em que um anúncio daquela magnitude fora feito, afirmando que parece que nem mesmo a equipe de Trump parecia saber o que ia ser anunciado. Kaplan complementa:
Os Estados Unidos não tiveram um presidente como este na era moderna — no século XX e início do XXI. Houve três grandes filósofos judeus alemães nos EUA, na metade do século XX — Hannah Arendt, Leo Strauss e, ainda jovem, Henry Kissinger. Eles haviam vivido a República de Weimar, tinham visto em primeira mão a democracia se autodestruindo. Ou seja, Hitler foi colocado no poder por meios democráticos. Então, eles sempre tiveram uma certa cautela com a democracia americana.
E essa cautela era a mesma dos pais fundadores dos EUA, que também entenderam, como os filósofos renascentistas, que você pode criar o melhor sistema de governo do mundo, mas ele depende, em última instância, da virtude. Da virtude mínima das pessoas eleitas, das pessoas no poder. Porque, se não houver virtude, nenhum sistema vai te salvar.
Adiciono à fala precisa de Kaplan, tão somente como ilustração ao estado frágil das instituições o seguinte relato histórico. Após a conclusão da Convenção Constitucional dos Estados Unidos, em setembro de 1787, Benjamin Franklin foi abordado por uma senhora que lhe indagou: “Bem, doutor, o que temos uma república ou uma monarquia?” ao que Franklin respondeu: “Uma república, senhora, se conseguirem mantê-la”.
* As transcrições foram traduzidas do inglês, extraídas da geração automática do Youtube.
(A continuar)
"se não houver virtude, nenhum sistema vai te salvar"... Aristóteles ainda respira... muito bom texto, Volney!
O ser humano não gosta de incertezas e nossa perplexidade deriva do fato que não podemos controlá-la. A história nos mostra que a estabilidade é uma utopia. Prepare-se para o pior, espere pelo melhor e aceite o que vier (provérbio chinês).