Semana passada, a notificação dos bancos brasileiros pelo governo americano ganhou espaço na mídia como mais um capítulo da crise diplomática entre Brasil e EUA que envolve a aplicação da Lei Magnitsky contra o ministro Alexandre de Moraes. O episódio esteve na sequência de outros recentes que estão direta ou indiretamente relacionados ao caso como a decisão do ministro Dino no STF, que vedou a aplicação de sanções internacionais automaticamente no país, e a carta de algumas Big Techs para o presidente Trump, pedindo para aumentar a pressão sobre o Brasil devido às decisões recentes do judiciário brasileiro.
À primeira vista, trata-se apenas de mais uma disputa entre Estados Unidos e Brasil, como tantas outras do passado. Mas as implicações vão muito além. Estes episódios citados são sintomas de uma mudança tectônica na ordem internacional, uma transição de um mundo estruturado pela soberania territorial para outro cada vez mais moldado pela soberania informacional.
O que está em jogo não é apenas um desacordo sobre moderação de conteúdo ou abuso de autoridade judicial, como pode parecer. O caso Moraes sinaliza os estágios iniciais de uma transformação civilizacional: a erosão do paradigma vestfaliano e a emergência de uma nova arquitetura de poder baseada no controle dos fluxos de dados, das plataformas digitais e dos algoritmos. Crucialmente, esse novo paradigma não substitui o anterior, o de Vestfália, mas coexiste com ele: ora complementando, ora colidindo.
O mapa em expansão da soberania
A ordem vestfaliana, inaugurada em 1648, baseava-se em uma premissa aparentemente simples: a soberania coincidia com as fronteiras territoriais. A autoridade de um Estado se estendia sobre a terra dentro de seus limites, e nenhuma outra potência poderia legitimamente interferir nesse espaço. Mas mesmo em sua formulação clássica, o conceito de soberania nunca foi tão geograficamente fixo quanto parecia.
À medida que os avanços tecnológicos ampliaram o alcance da atividade humana, o conceito jurídico de soberania evoluiu para acompanhá-los. Na era moderna, o direito marítimo passou a reconhecer as águas territoriais — inicialmente apenas três milhas náuticas —, eventualmente ampliadas para doze milhas náuticas de mar territorial soberano, mais zonas econômicas exclusivas de 200 milhas náuticas e direitos sobre a plataforma continental.
Os céus vieram em seguida. O advento da aviação no início do século XX forçou o desenvolvimento da soberania do espaço aéreo. A autoridade de uma nação passou a se estender verticalmente, abrangendo o espaço aéreo diretamente acima de seu território e de suas águas — um reconhecimento crucial à medida que o poder aéreo se tornava uma característica definidora da guerra e do comércio modernos.
Em meados do século, o espaço sideral surgiu como a próxima fronteira legal. O Tratado do Espaço Exterior de 1967 declarou que nenhum país poderia reivindicar soberania sobre corpos celestes. No entanto, reforçou a soberania ao conceder aos Estados a jurisdição sobre os objetos que lançassem para o espaço e ao reconhecer o direito de regular e proteger ativos espaciais.
Em todos os casos, a soberania se estendeu para incorporar novas realidades tecnológicas, mas permaneceu ancorada no espaço físico. O controle do território — terrestre, marítimo, aéreo ou orbital — ainda era o principal fundamento do poder político.
A revolução digital, contudo, introduziu uma ruptura de natureza distinta. Ao contrário do mar, do céu ou do espaço sideral, o ciberespaço não respeita fronteiras naturais nem a geografia física. Os fluxos de dados atravessam cabos de fibra óptica enterrados sob os oceanos, saltam entre servidores em nuvem espalhados por múltiplas jurisdições e trafegam por redes operadas por empresas privadas, fora do alcance direto de qualquer Estado.
O próprio substrato do poder se deslocou: dos átomos para os bits, da geografia para a informação. É esse o desafio que o caso Moraes escancara.
A ascensão da soberania digital
O controle dos fluxos informacionais importa hoje tanto quanto o controle da terra, do mar ou do ar. Plataformas, centros de dados, cabos submarinos e sistemas algorítmicos tornaram-se a infraestrutura crítica do poder no século XXI.
Cada vez mais, controlar a informação significa controlar economias, narrativas e realidades políticas. Plataformas como Meta, Google, X e Rumble não são apenas corporações privadas; funcionam como entidades quase soberanas. Estabelecem regras, impõem normas, resolvem disputas e mediam o acesso à informação de bilhões de pessoas ao redor do mundo.
As sanções propostas contra Moraes refletem essa mudança. Suas ordens judiciais contra plataformas como o Rumble são apresentadas domesticamente como esforços para combater a desinformação. Mas, da perspectiva dos parlamentares americanos, essas ações representam não apenas abuso de autoridade, como também uma forma de intrusão territorial, uma tentativa estrangeira de impor restrições às normas de expressão e à liberdade operacional de uma plataforma digital sediada nos EUA.
Não se trata de um incidente isolado. É a manifestação visível de uma disputa mais ampla sobre quem governa os datascapes do mundo. Se as guerras do século XX foram travadas por "espaços vitais", campos de petróleo, rotas marítimas e corredores aéreos, os conflitos do século XXI poderão girar em torno da soberania das plataformas e do fluxo de dados.
Dataland: o novo território estratégico
Nesta nova ordem emergente, já não importa tanto quem controla o Heartland (a Eurásia continental) ou o Rimland (as regiões costeiras da Eurásia). O que importa é quem controla o Dataland, esse vasto espaço não físico composto por servidores, fluxos de dados, algoritmos e infraestrutura em nuvem.
Assim como o poder marítimo britânico sustentou o sistema comercial global no século XIX, e a supremacia aérea e naval americana moldou a ordem internacional liberal do século XX, a infraestrutura digital está se tornando a espinha dorsal da hegemonia no século XXI.
Leis como o Magnitsky Act — originalmente concebidas para sancionar autoridades estrangeiras por abusos de direitos humanos — tornaram-se instrumentos dessa nova forma de projeção de poder digital, uma espécie de política das canhoneiras do ciberspaço. Nesse contexto, o senador Marco Rubio deixa de ser apenas um legislador convencional e passa a encarnar uma espécie de Commodore Perry do século XXI, tentando impor normas americanas aos espaços digitais além das fronteiras dos EUA, tal como Perry forçou o Japão a abrir-se ao comércio em 1854 por meio daquilo que ficou conhecido como os “tratados desiguais".
Essa mudança não é meramente teórica, mas real. Tanto os governos Biden quanto Trump tentaram banir o TikTok do mercado americano, tratando a plataforma não somente como uma ameaça à segurança, mas como um vetor narrativo hostil, um instrumento de influência estrangeira capaz de remodelar a opinião pública dentro dos Estados Unidos.
Simultaneamente, a China passou décadas aperfeiçoando a Grande Muralha Digital, uma complexa arquitetura de soberania digital que funciona como um análogo moderno da Muralha da China. Assim como a antiga muralha foi projetada para evitar invasões de bárbaros, a nova muralha digital foi criada para impedir a entrada de narrativas, ideias e plataformas estrangeiras.
Coexistência, não substituição
Importante notar que a ascensão da soberania digital não torna obsoleta a ordem vestfaliana. Os dois paradigmas agora coexistem. O velho mundo da soberania física continua plenamente ativo, como demonstram a guerra da Rússia na Ucrânia e os conflitos no Oriente Médio.
As disputas geopolíticas por terra, mar e ar continuam vigorosas. Mas sobre elas se sobrepõe uma segunda e igualmente relevante disputa pela soberania do ciberespaço. A batalha pelo Dataland não substitui a geopolítica clássica, ela a complementa, às vezes até a sobrepuja.
A ordem liberal está colapsando?
O caso Moraes não é apenas uma controvérsia brasileira; é um sinal de alerta sobre o futuro da ordem global. A partir dele, inúmeras dúvidas surgem. O ciberespaço será governado por normas universais e estruturas multilaterais ou caminhamos rumo a um mundo de balcanização digital, no qual potências rivais erguem firewalls soberanos, plataformas proprietárias e internets fragmentadas? O princípio da não intervenção sobreviverá quando intervenções podem ocorrer não com tanques, mas com códigos, sanções e censura algorítmica? Quando o território deixa de ser físico e passa a ser informacional, quem detém a soberania?
Essa ordem tecnopolítica permanece em grande parte não escrita, mas seus contornos se tornam cada vez mais visíveis nas sanções, nas disputas regulatórias transnacionais, e nas crescentes lutas de poder entre Estados, corporações e cidadãos pelo controle dos bens comuns digitais. A questão central da geopolítica de hoje talvez não seja mais saber quem governa o Heartland ou quem comanda os mares, mas sim: quem controla a nuvem — e, portanto, as mentes, os mercados e as realidades políticas do século XXI.
AMEI seu texto, Renato!
Citou até o Direito do Mar…quem redigiu esse tratado tinha um pacto com o demônio 😈 😂. É um saco estudar essa convenção.
Heartland…uma aula de geopolítica! 👏🏻🤗
Clímax da matéria: o orgasmo retratado na foto! Chorei ! 😂😸 Fechou com chave de ouro, rs. 🏆
PS: final masculina da US Open hoje; fui! 😍
Não entendi até agora por que o Alcaraz raspou o cabelo,rs.
Excelente reflexão. Traz o questionamento de quais são os novos poderes soberanos que essa tecnologia criou e quais irá criar, como será a convivência entre esses novos poderes e os que já existem (caso venha a acontecer), qual prevalecerá e as consequências para o mundo todo.