#IgnorandoOBrasil
Continuo ignorando o que acontece no país e sigo escrevendo sobre as impressões da minha recente viagem ao Japão.
Lula afirma que traficante é vítima de usuário de drogas. Especialista de segurança fala sobre jogar uma pedra na cabeça de bandido portando um fuzil. Carluxo como pré-candidato ao Senado por SC. Quanto mais leio sobre o Brasil, menos me sinto impelido a escrever sobre o Brasil. Por isso, continuo ignorando o que acontece no país e sigo escrevendo sobre as impressões da minha recente viagem ao Japão. Hoje trato do museu mais fabuloso que visitei no arquipélago nipônico.
Encravado em meio às belas montanhas de Shigaraki, a sudoeste da famosa cidade de Kyoto, o Museu Miho fica fora do circuito da maioria dos turistas. Isso se explica pelo fato de estar deliberadamente isolado, num local de difícil acesso. O Museu é um contraponto à cultura atual de exposição instantânea das redes sociais. Ele não nos convida a visitá-lo; apenas nos recompensa por conhecê-lo. Sua própria existência é uma metáfora do valor das coisas que exigem esforço para serem descobertas.
A maneira mais prática de se chegar ao Miho é ir de trem de Kyoto até a estação Ishiyama para então pegar um ônibus convencional. Após 50 minutos passando por paisagens e estradas cada vez mais solitárias, chega-se ao último ponto da linha. De lá, uma caminhada de 10 minutos leva ao prédio principal. Mas essa não é uma caminhada qualquer. O percurso é quase uma alegoria: subimos uma estrada ladeada por cerejeiras até alcançar um túnel escavado numa montanha. Ao atravessá-lo, o visitante aos poucos vai enxergando a fachada da construção desenhada por I.M. Pei.
O projeto, do mesmo arquiteto que fez a pirâmide do Louvre, é inspirado numa antiga história chinesa. Na narrativa de A Primavera da Flor de Pessegueiro, um pescador atravessa uma gruta ao seguir o aroma de pessegueiros e encontra uma vila utópica onde todos vivem em harmonia com a natureza, isolados do mundo exterior de onde vinha o visitante.
Atravessar aquele útero de pedra é um ritual de purificação. Deixamos para trás um mundo profano, das formas brutas, e somos expelidos sobre uma ponte suspensa que nos leva a mundo sagrado da beleza e da contemplação. É como se encontrássemos algo que há muito se perdeu. Uma experiência religiosa no melhor sentido etimológico da palavra: religare.
Independente da crença, a beleza do lugar nos remete à experiência religiosa da arte fora do âmbito da fé. Ou seja, quando o sagrado migra para a estética. O próprio Museu é um templo, só que um templo sem liturgia, enquanto nós, visitantes, somos os seus sacerdotes. O único rito aqui é o olhar. Essa talvez não seja apenas minha percepção, mas o intento original dos financiadores. Afinal, Miho faz parte de uma comunidade espiritual ligada à seita Shinji Shumeikai, fundada por Mihoko Koyama, que empresta seu nome à construção.
Dentro do Museu, a estrutura de vidro e aço deixa a luz natural entrar, ao mesmo tempo que oferece uma vista panorâmica para o vale ao seu redor. Uma integração única de ambiente natural com construção artificial. Em suas salas e câmaras, encontramos um acervo composto de estátuas e outras obras de civilizações da Antiguidade, como China, Roma, Grécia e Egito. Além, claro, de arte japonesa.
Depois de pouco mais de três horas naquele lugar, é hora de ir embora. Ao descer os poucos degraus do Museu e me deparar novamente com a ponte suspensa e com a boca do túnel, uma emoção inefável me atinge. A ideia de que provavelmente jamais voltaria ali me enche de tristeza. Talvez seja a sensação de finitude. É difícil aceitar que algumas coisas ficarão no passado para sempre. Essa, contudo, é a maior conclusão sobre a beleza: ela só existe porque é efêmera.
Quando as lágrimas já subiam aos meus olhos, surge um homem com uma câmera, pedindo para bater fotos dele na frente do Miho. Um arquiteto chinês que estava no Japão em razão da Expo 2025. Fotos batidas, tomamos o rumo juntos de volta pela ponte. No caminho, conversas sobre arquitetos chineses, vencedores do prêmio Pritzker e, como sou brasileiro, sobre Oscar Niemeyer e Brasília.
O diálogo descontraído, numa língua não-nativa, de dois forasteiros num país estrangeiro ameniza meu retorno progressivo ao mundo real. A cada passo, Miho vai ficando para trás, engolido do outro lado do túnel, como um sonho que vai se dissolvendo instantes antes do despertar, como uma lembrança de outros tempos, de outro mundo.








Excelente texto. Beleza, religiosidade, efemeridade, finitude e, sobretudo, paz de vida. Algo que não temos aqui.
Melhor não voltar!