#interludio: A Atrofia da Razão (1)
A religião e a filosofia ficaram esvaziadas de racionalidade no debate público.
Em 1799, o filósofo e teólogo prussiano Friedrich Schleiermacher publicou uma obra cujo título se poderia traduzir como “Sobre a religião: discursos aos educados entre os seus desprezadores” (Über die Religion: Reden an die Gebildeten unter ihren Verächtern). O título expressa bem o espírito daqueles aos quais os cinco discursos são dirigidos. Como o próprio autor inicia seu primeiro capítulo dizendo, pode parecer surpreendente que alguém ainda queira escrever sobre um assunto completamente negligenciado pelas pessoas “saturadas pela sabedoria do nosso século. [...] especialmente agora, que a vida das pessoas educadas está distante de qualquer coisa que possa vagamente lembrar a religião” [1].
Dirigindo-se claramente a um público impregnado do espírito iluminista – categoria esta que ainda causa confusões, mesmo nas melhores cabeças –, mas também para os céticos românticos para os quais, em termos gerais, uma apologia à religião soa fora de lugar, Schleiermacher está completamente consciente das objeções que deve enfrentar em seu tempo. No entanto, se é certo que ele se dirige a tal público não sem certa ironia – afinal, por serem desprezadores tão absolutos não podem ser assim tão intelectualmente bem formados –, é igualmente verdadeiro que Schleiermacher acaba por esposar uma concepção de religião que se obriga a se retrair para o domínio da experiência pessoal e interna do sentimento. Mesmo no seu esforço de explicitar a religião como possibilidade genuinamente humana e defensável, Schleiermacher acaba por ter de reduzir drasticamente seu escopo:
A religião não deseja determinar e explicar o universo de acordo com sua natureza, como faz a metafísica; ela não busca dar continuidade ao desenvolvimento do universo e aperfeiçoá-lo pelo poder da liberdade e da escolha livre divina de um ser humano, como faz a moral. A essência da religião não é nem o pensamento nem a ação, mas a intuição e o sentimento. [2]
Creio ser razoável dizer que hoje, mais de 200 anos depois da obra de Schleiermacher, a imensa maioria das pessoas, em especial ateus e agnósticos, concordariam integralmente com a definição dada acima pelo filósofo e teólogo do século XVIII. A religião não é – e nem deve ser – um discurso de primeira ordem sobre o mundo, isto é, não deve ter como seu objeto dizer como a realidade se comporta ou se estrutura, assim como também não deveria se imiscuir em questões de moralidade – sobretudo pública. Sua “essência” não está ligada propriamente ao pensamento e à justificativa racional. Ela teria de dizer respeito a elementos que, ao fim e ao cabo, são acessíveis apenas a um único portador, isto é, os sentimentos e intuições pessoais.