#interludio: A Chaga do Cristianismo
A ressurreição ainda é o maior enigma de todos os tempos
“O cristianismo, identificando verdade com fé, deve ensinar — e, adequadamente compreendido, de fato o faz — que qualquer interferência à verdade é imoral. Um cristão com fé nada tem a temer dos fatos; um historiador cristão que estabelece limites para o campo de investigação, em qualquer ponto que seja, está admitindo os limites de sua fé. E, naturalmente, também destruindo a natureza de sua religião, qual seja uma revelação progressiva da verdade. Por conseguinte, o cristão, a meu ver, não deve ser impedido, nem no mais leve grau, de seguir o fio da verdade; com efeito, é, positivamente, fadado a segui-la. De fato, ele deveria ser mais livre que o não-cristão, comprometido por princípio com sua própria rejeição. Em todas as circunstâncias, procurei apresentar os fatos da história cristã do modo mais verdadeiro e mais cru de que sou capaz, deixando o resto para o leitor”.
Paul Jonhson, no prefácio da sua História do Cristianismo.
O evangelho de João diz que, após a morte de Cristo na cruz, soldados romanos quebraram as pernas do primeiro homem que estava ao lado dele, e depois as do segundo. Quando chegaram a Jesus, decidiram, repentinamente, não cometer o mesmo ato. Conta o discípulo (João 19:34–37):
“Em vez disso, um dos soldados perfurou o lado de Jesus com uma lança, e logo saiu sangue e água. Aquele que o viu, disso deu seu testemunho, e o seu testemunho é verdadeiro. Ele sabe que está dizendo a verdade, e dela testemunha para que vocês também creiam. Estas coisas aconteceram para que se cumprisse a Escritura: ‘Nenhum de seus ossos será quebrado’ e, como diz a Escritura noutro lugar: ‘Olharão para aquele que trespassarem’”.
Como tudo na história de Cristo, cada detalhe tem um sentido simbólico intenso, que ecoa através dos tempos. João é o único dos evangelistas que afirma ter visto o cadáver de Jesus ser ferido após sua morte porque, segundo os estudiosos, dos doze apóstolos, ele teria sido o que presenciou a crucificação (é o que também afirma o seu evangelho). Portanto, esta chaga post mortem possui um significado que se traduz no movimento da História, assim como a súbita decisão de não quebrarem suas pernas. Ferem o corpo de Cristo, mas o mantêm intacto. O que isso quer dizer? Compete a nós, que estamos neste presente sombrio (como todos os presentes), avaliar o que aconteceu no passado para entender melhor este fato inusitado — e o que isso tem a ver com nossa vida cotidiana e futura.
Um dos guias mais polêmicos para esta empreitada parece ser o livro História do Cristianismo, do historiador inglês Paul Johnson. É um catatau de 630 páginas, que abrange um escopo muito amplo — afinal, são quase dois mil anos de uma doutrina espiritual que, no fim das contas, triunfou por causa do fracasso de seu fundador, uma das maiores contradições que ninguém teve coragem de explicar até hoje. É justamente este caráter frágil e incerto que fascina os estudiosos — sejam eles ateus ou não. Johnson, no caso, não era um ateu. Falecido em 2023, foi um Católico Apostólico Romano, defensor do papa João Paulo II e de Margaret Thatcher, conhecido por seus pares como conservador, reacionário, extremamente culto, com uma pena afiada que fez muitos deles ficarem à distância, com medo de que fossem a próxima vítima de suas diatribes. Sua obra era inusitada por dois aspectos: o primeiro era que Johnson escolhia os temas mais ambiciosos, como os Estados Unidos, os Judeus ou o Século XX, e os tratava com a maior elegância, numa prosa clara, fluente, sempre divertida, mas sem deixar cair no reducionismo ideológico ou na vontade de facilitar tudo para o leitor; o segundo era pela abordagem dos grandes painéis históricos por meio da psicologia dos indivíduos, explicando os fenômenos através deles, e não o contrário, o que dava um dinamismo ímpar à narrativa e também uma nova visão sobre determinadas situações, consideradas intocadas pelo público comum. Assim, Johnson mostrava uma verve fora do comum, típica dos pugilistas verbais que foram seus modelos, como Samuel Johnson, Jonathan Swift, John Milton e Erasmo de Roterdam, e conseguia desmistificar de forma implacável sujeitos como Karl Marx (no fantástico Os Intelectuais), John Kennedy (em A History of the American People), Lênin (no fundamental Tempos Modernos, muito superior ao marxistóide A Era dos Extremos, de Hobsbawn) e Disreali (no didático História dos Judeus).
Não podia deixar de ser a mesma coisa em História do Cristianismo. Polêmica é o que não falta. Johnson chama, por exemplo, Santo Agostinho, um dos filósofos cristãos mais discutidos da Patrística, autor de Confissões, A Cidade de Deus e A Trindade, de “egoísta, egocêntrico e o inspirador das inquisições espanholas”; São Tomás Becket foi um sujeito que, apesar de ter sido canonizado, “não fez nada de muito importante” e era pouco rigoroso nas penas morais que devia impor aos seus monges; Martinho Lutero teve a ideia da predestinação enquanto estava na latrina; Pio XII era um homem com manias estranhas, como a de emprestar suas sandálias papais para enfermos, ao mesmo tempo que era um hipocondríaco feroz. E assim por diante. Numa primeira visão, parece que Johnson fez uma história de fofocas em vez de um estudo sério sobre a passagem do cristianismo pelo tempo mundano, mas, na verdade, todos estes perfis insólitos são a marca registrada de um historiador que não tem medo de expor a fragilidade do ser humano, principalmente ao se tratar dos homens que mudaram o pensamento cristão — todos eles dotados de ampla inteligência, assim como de falhas monstruosas, que acabaram por determinar a vida de milhões de pessoas.