#interludio: A Estetização Do Nada
Miguel Forlin analisa o Nosferatu (2024) de Robert Eggers
Por Miguel Forlin
Em Nosferatu (Idem, 2024), de Robert Eggers, entre a cena na qual o Dr. Wilhelm Sievers (Ralph Ineson) é atacado em seu próprio hospital pelo Sr. Knock (Simon McBurney) e a cena seguinte, em que o mesmo Dr. Wilhelm Sievers tenta conter o corpo convulsivo de Ellen Hutter (Lily-Rose Depp), há um raccord. Em linhas gerais, raccord é uma técnica de montagem que conecta duas cenas por meio de uma rima – visual, sonora ou narrativa – a fim de criar algum tipo de efeito.
No caso acima, ele estabelece um paralelo visual entre o mal que acomete ambos os personagens, Knock e Ellen Hutter. No entanto, e o ataque sofrido pelo Dr. Wilhelm? Por que mostrá-lo se não havia a intenção de trabalhá-lo dramaticamente? Sim, a ação de Knock reforça para o espectador a condição em que o personagem se encontra, porém, o ocorrido envolveu mais de uma pessoa, e a negligência com a vítima causa não só um estranhamento, uma vez que, de uma cena para outra, é como se nada tivesse acontecido, mas também a impressão de desleixo, de falta de carpintaria dramática – impressão, aliás, recorrente ao longo de todo o filme.
Esse exemplo, apesar de aparentemente banal, ilustra de modo preciso a precariedade de Nosferatu, e do cinema de Eggers desde O Farol (The Lighthouse, 2019): a ausência de uma matéria satisfatória. Eggers é, no pior sentido do termo, um esteticista. Ele se preocupa com tudo o que está na superfície e ao redor, mas quase nunca com o centro. Seus filmes são pródigos em elementos visuais e sonoros (embora tais elementos apareçam como clichês na maioria das vezes), e em referências históricas, literárias e cinematográficas, mas paupérrimos no que diz respeito à essência.
Ora, superfície sem profundidade é, pura e simplesmente, uma miragem, ou seja, uma ilusão ótica, a promessa de um êxtase que não se cumpre, em suma, algo que se apresenta como positivo, mas que é falso. Isso faz com que o diretor esteja no oposto extremo de duas tendências nefastas do cinema contemporâneo: enquanto alguns cineastas priorizam o conteúdo em detrimento da forma, outros, como Eggers, priorizam a forma em detrimento do conteúdo. Entretanto, cinema narrativo não é a priorização de uma coisa nem de outra, mas, sim, a junção indissolúvel de ambas.
Dar-lhes-ei mais dois exemplos: por Nosferatu se passar na década de 1830 e ser uma nova versão de um clássico do cinema mudo (Nosferatu – Uma Sinfonia do Horror; Nosferatu, Eine Symphonie des Grauens, 1922), os diálogos entre os personagens remetem a um estilo de fala (supostamente) característico da época (aquele presente em romances literários, acima de tudo), e as performances recriam o que, segundo Eggers, seria um método de atuação dos atores do período silencioso (ao que tudo indica, os olhos grandes da maior parte do elenco pesaram na hora de ela ser escalada). Entretanto, em vez de essas coisas realçarem e potencializarem o drama, elas o empobrecem, já que as falas são de um artificialismo atroz e o desempenho dos atores, canhestro e risível (nem Willem Dafoe se salva).
Por outro lado, talvez ciente de que os elementos humanos surjam precariamente, Eggers dobra a aposta, como se o realce de algo que não está lá surtisse algum efeito positivo, e o filme “corrige” uma falha com outra, substituindo ausência por didatismo. Nosferatu elimina todas as sutilezas, nuances e ambiguidades por meio de uma mastigação que entrega absolutamente tudo para o espectador, não deixando o menor espaço para a imaginação e o intelecto. É como se Eggers quisesse tomá-lo pela mão e lhe dizer: “— Veja, é isso o que está acontecendo agora”; “— Veja, é isso o que você deve sentir nessa cena”; “— Veja, é nisso que você deve pensar neste momento” etc.
Inevitavelmente, o resultado acaba sendo aborrecido e supérfluo. O que se tem não é nada mais do que uma obra espalhafatosa, que só sabe esbanjar perfumaria. Em outras palavras, é um corpo desprovido de alma, mente e coração, e um muitíssimo menos vistoso do que imagina ser. Na verdade, trata-se de algo ainda pior, pois mede a inteligência e a sensibilidade do outro pelas suas próprias, ou melhor, pela falta delas, e se acha na posição de explicar o que está fazendo, quando, em essência, não está fazendo nada, exceto se olhar no espelho com vaidade.
Querem um exemplo ainda mais contundente? De que se trata Nosferatu? De nada, pois o filme não nos fornece nenhuma base para que possamos associar a ele alguma temática, nem a questão da peste (que poderia ser facilmente atrelada a uma tragédia mundial recente, a Covid-19), nem a questão do Mal, nem a questão do papel da mulher na sociedade, nem qualquer outro tema. Toda intepretação, a fim de não extrapolar, deve partir do objeto analisado, e, partindo do filme em questão, ressalto: não há absolutamente nada nele capaz de ser extraído de modo profundo, ou, no mínimo, interessante.
Do original de 1922, de F. W. Murnau, é possível extrair muito, inclusive a leitura mais célebre: a de que a chegada de Nosferatu é uma metáfora das forças diabólicas que estavam tomando a Europa de assalto, as quais culminariam na Segunda Guerra Mundial, assim como também é possível extrair muito da versão de Werner Herzog, Nosferatu – O Vampiro da Noite (Phantom der Nacht, 1979), em que foram feitas adições riquíssimas, possibilitando uma maior reflexão do embate entre a ciência e o desconhecido (assunto que já estava presente implicitamente no primeiro longa). Já em relação à refilmagem de Eggers, não dá para dizer o mesmo.
Porém, o filme tem sido um sucesso estrondoso de bilheteria e crítica, o que, todavia, não é motivo de surpresa. Não é que as pessoas estão gostando dele apesar de seus deméritos, mas, sim, em razão deles, pois Nosferatu representa de modo certeiro o mundo em que vivemos atualmente. Em tempos de Instagram e TikTok, em que a superfície imagética reina de maneira suprema e soberana, a inteligência chega a níveis assustadores e a sensibilidade se tornou item raro, os filmes de um diretor como Eggers caem como uma luva.
Até a estrutura narrativa de Nosferatu foi concebida e realizada especialmente para os dias de hoje, uma vez que seu formato, uma sucessão de picos e quedas — a cena começa morna, cresce, aproxima-se do seu auge, o auge é interrompido e ela declina — visa satisfazer aqueles que, caso não estimulados constantemente, a ponto de sempre esperarem pela consumação do gozo impedido, perdem o foco e a atenção. Ou seja, todo esse sucesso é compreensível. Afinal, para uma época em que aparência substitui substância, nada melhor do que um filme que estetiza o nada.
Miguel Forlin é crítico, professor de cinema e cineasta. Foi colunista e, depois, coeditor da seção de cinema do Estado da Arte, do jornal O Estado de São Paulo; curador da Mostra Cinema & Liberdade; membro do júri da crítica da 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo; parecerista de duas edições do PROAC; e professor do MIS-SP, onde ministrou o curso “David Lynch – Transformando Ideias em Imagens”. Atualmente, leciona na escola on-line A Arte do Cinema, da qual é um dos fundadores; colabora regularmente com a Versátil Home Video, distribuidora brasileira de filmes em DVD e Blu-Ray; coedita a Littera 7, revista online de cultura, que também ajudou a fundar; e está realizando, como diretor, seu primeiro longa-metragem, intitulado “Haceldama”.
Sou grande entusiasta da versão de 1922,esse novo ainda não assisti. Pelo texto deu vontade de ver.
O filme é lindo! e só! Mas em meio a lições de moral e mostrar que os homens são o problema da humanidade, um filme que não diz nada... passa ser maravilhoso!