#interludio: A Façanha Da Virtude
O desastre no Rio Grande do Sul revela um Brasil surpreendente.
Como é evidente, eu não testemunhei a grande enchente de Porto Alegre ocorrida em 1941, e que se tornou um marco para a cidade, tanto psicológica quanto historicamente. De fato, aquele evento modificou inclusive a paisagem da cidade: em meados dos anos 1970 foi construído um muro de contenção com mais de dois quilômetros e meio de extensão e três metros de altura ao longo da avenida que ladeia o Guaíba, o agora novamente glorioso muro da Mauá.
Mudei-me de São Paulo, onde nasci e vivi por 30 anos, para fazer o doutorado no Rio Grande do Sul em 2011, na Universidade do Vale do Rio dos Sinos, onde agora há quase dez anos sou professor. Pois neste exato momento em que escrevo, essa mesma universidade abriga agora quase 1000 pessoas nos seus ginásios e está se preparando para transformar o hall do prédio da sua enorme biblioteca em um hospital de campanha, já que dezenas de unidades básicas de saúde da região tiveram de ser desativadas por estarem sem condições de funcionamento.
A conexão entre os dois momentos históricos – passado e presente – que menciono acima, e que distam 83 anos um do outro, é um conjunto de acontecimentos cuja descrição acurada não pode mais ser feita apenas por meio da cansada palavra “tragédia”. O que acontece aqui no Rio Grande do Sul neste instante tem tantas dimensões que um único artigo não possui condições de explorar. E como sou pesquisador e professor de filosofia e meu trabalho consiste, em parte, em fazer análises e distinções conceituais muito abstratas e, por vezes, difíceis de entender, poderia dar a falsa impressão ao leitor que é algo assim que está por vir nas próximas linhas. Não é. O que penso que se deva fazer agora é precisamente o oposto. As diferenciações a serem traçadas e o discernimento sobre os aspectos que realmente importam nesse momento são realmente simples, muito simples, e talvez eu tenha até de pedir desculpas a quem lê pela repetição pedagógica. Contudo, como no Brasil temos dificuldades severas no que diz respeito ao entendimento e à retenção de coisas elementares, tudo precisa sempre ser dito novamente e no nível mais simplório.
Em primeiro lugar, este evento entrará para história das perdas e mortes devidas parcialmente a desastres naturais apenas por ter sido o primeiro de uma série de outros que voltarão a ocorrer de maneira periódica, com intervalos cada vez menores entre eles. Basta dizer que a cidade de Porto Alegre, após 1941, quando a cota do Guaíba atingiu 4,76 metros, já testemunhou quatro grandes cheias só nos anos 2000 (2002, 2015, 2016, 2023), até esta, a quinta, em que a marca mais alta do lago até este momento é de 5,35 metros. Ignorar o impacto da realidade das mudanças climáticas e de seus efeitos serve apenas para agradar fanáticos num amplo espectro ideológico que, por uma razão ou por outra, instrumentalizam os fatos para confirmarem os seus vieses ou atacar seus inimigos políticos.
Disse no parágrafo anterior “devidas parcialmente a desastres naturais” porque, novamente, é simples e está ao acesso de todos constatar que, no século XXI, não há nenhum desastre relacionado a causas naturais cujos danos não podem ser ou em parte previstos ou em parte mitigados. De terremotos a enchentes, de pandemias globais a ciclones, não há evento possível para o qual não disponhamos de recursos para que ao menos os efeitos experimentados sejam mais brandos. Seja como for, o avanço tecnológico que está na causa de muitas das condições climáticas que causam esses fenômenos também nos auxiliam contra eles. O que Píteas, o geógrafo grego do século IV a. C. disse a respeito dos Países Baixos – onde “mais pessoas morreram na luta contra as águas do que na luta contra outros homens” – não faz hoje mais sentido algum por lá. Se as características hidrográficas do estado e de sua geografia concorrem para o acontecido, elas não podem ser as únicas responsabilizadas pelo resultado final de tanta destruição. Mas, lembremos, estamos no Brasil e aquilo que em Esopo é fábula – sobre a cigarra que passa o verão cantando e dançando e a formiga que se esforça em ser previdente –, aqui é a descrição factual do comportamento da elite política e econômica.
Não há cuidado prévio, não há planos de contingência, não há, em uma palavra, a virtude da gravitas que era esperada das figuras públicas romanas. A capacidade da classe governante, para além de qualquer partido ou gestão específica, de aferir o peso correto dos acontecimentos presentes e futuros está tão distante da realidade quanto a passarela da Madonna estava longe da cabeça do “populacho”. Uma vez mais, basta ver a demora na resposta oficial em todos os níveis – municipais, estadual e federal – e na dependência quase absoluta que os desgraçados pelas águas estão tendo da única força realmente infatigável, obstinada e sempre de prontidão: a da associação livre dos indivíduos em benefício daqueles que sofrem.
Ainda enquanto escrevo estas linhas, a maior parte dos resgates está sendo feita por indivíduos e pequenos grupos que, usando dos seus próprios recursos, ainda que tais recursos sejam um caiaque de dois lugares ou mesmo um colchão inflável que funciona como “embarcação”, fazem mais pela comunidade do que qualquer agente público com orçamentos nababescos que nunca sabemos exatamente para onde vão. O mesmo ocorre com os insumos para alimentação, vestuário, medicamentos, veículos e força de trabalho nos centros de recepção de desabrigados. Até parte dos helicópteros cujos sons nos acostumamos a ouvir sobre as nossas cabeças nos últimos dias, vêm da mobilização de “meros civis”. Nos últimos dias o estado viu levantar-se uma multidão de voluntários que se auto-organizou como foi possível e que, honestamente, é a única prova incontornável de que ainda vale a pena lutar para viver neste país. Em outras palavras, é importante lembrar aqui, de novo, de algo simples: o axioma que enfeixa a nossa Constituição de 1988, que reza que “todo poder emana do povo”, declara também, em seguida, que tal poder é exercido “por meio de representantes eleitos”, mas também acrescenta “ou diretamente”. São essas últimas palavras que, de fato, contêm o germe da ideia central e que se vê expressa sobretudo na ação sobrenatural da caridade entre as pessoas.
Comecei este texto aludindo a aspectos da minha vida pessoal porque, embora eu não tenha sido atingido diretamente, tenho diversos alunos e amigos que perderam suas casas, todos os seus bens, seus animais de estimação e que tiveram um tanto de suas perspectivas de vida para um futuro próximo arrastado pelas águas. O que está acontecendo aqui, como em qualquer desastre ou guerra, acontece sempre no nível pessoal. Somos nós que diluímos os fatos numa massa amorfa de números e narrativas para conseguirmos lidar com corpos de crianças boiando pelas águas ou idosos se afogando lentamente porque não conseguem se locomover e fugir quando a água sobe em velocidade impressionante. Mas não se pode afastar do espírito, sobretudo sob a falsa objetividade da “análise política” – essa sombra nefasta que tem se espraiado sobre a alma de um sem-número de pessoas –, que aqueles que morrem e sofrem são sempre indivíduos. Que aqueles que saem de suas casas, por vezes remando sobre portas a fim de salvar pessoas a quem o Estado já abandonou muito antes da primeira gota de chuva, também são sempre indivíduos, da mesma forma que quem compromete o orçamento da própria família para comprar itens de higiene e mantimentos para completos estranhos são, também, indivíduos, a quem conhecemos e chamamos pelo nome.
No entanto, indiquei algo da minha história também porque, como paulista orgulhoso (um orgulho estúpido, admito), sou insuspeito para dizer o que direi agora. Parte considerável da grande imprensa – fundamentalmente do eixo Rio-São Paulo – tem exercido um sadismo mal disfarçado, como pode ser visto nos comentários de jornalistas parvos na televisão ou em chargistas de grandes jornais, dos quais qualquer senso de humanidade já se despediu há tempos. Ao que parece, a intelligentsia já decidiu que o que eles presumem ser certa inclinação política do “estado” ou mesmo as “tendências separatistas” – essas entidades as quais, notem bem, nada têm a ver com aquele corpo de bebê vagando morto por sobre as águas ou aquela idosa que morreu afogada dentro da própria casa – que devem ser devida e merecidamente lavadas e alvejadas pela enxurrada de água e lama. Para uma parte dos nossos bem-pensantes, aquela senhora ou aquela criança infelizmente se colocaram do lado errado da história e agora não podem senão lamentar a ação de Nêmesis que, vejam só, coincide exatamente com o que pensam aquelas cabeças privilegiadas. Desse modo, eu seria desonesto com a minha própria consciência se terminasse este texto sem dizer que o povo aqui, não por ser “gaúcho”, mas por ser virtuoso – aquela característica que nos impede de ser escravo de quem ou do que quer que seja –, está exibindo façanhas que, se não servem de modelo a toda Terra, ao menos servem certamente de paradigma a uma parcela do Brasil que precisa encontrar-se novamente consigo mesmo.
Gabriel Ferreira é doutor em filosofia e professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos.
Obrigado Gabriel. Texto sereno e esclarecedor. E sim, é imperioso sermos mais precavidos.
Obrigada pela clareza e a fala direta e reta!
É isso, somos indivíduos, somos únicos e, temos, além de muito lixo de ideologias e sarcasmos, a "humanidade" dentro de nós!
Que seja abençoado esse povo que está sofrendo tanto! Que sejam abençoados os indivíduos que se mobilizam para ajudar, da firma que puder!