Por Fabrício de Moraes
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porque aquilo que escrevo pode ler-se no escuro
– António Lobo Antunes (em Ontem não te vi em Babilônia)
Após quase meio século de atividade literária praticamente ininterrupta (com intervalos de um a dois anos entre a publicação de seus romances, geralmente) e diversas premiações literárias, o projeto estético de António Lobo Antunes, tido por muitos como o maior escritor português em atividade, constitui um universo semiótico e (digamos) psicossocial alcançado por uns poucos autores na história da literatura. Pensemos, por exemplo, num Balzac e sua descrição, num arco romanesco, da topografia sociológica da França novecentista; ou, ainda, a apreensão dos movimentos ideológicos, mentalidades e variações diastráticas da sociedade austríaca do período entreguerras, nas obras de Hermann Broch e Heimito von Doderer.
Portanto, num primeiro momento, talvez seja apropriada a afirmação de que Lobo Antunes, até aqui, ofereceu-nos uma cartografia emocional de seu país, o “último império”, nas palavras de Neil Bruce, que encontrou sua dissolução acelerada nas guerras coloniais (das quais o autor participou) da década de 1970. Porém, no âmbito formalista, seus romances, possivelmente mais do que qualquer outro autor lusófono, lidam corajosamente com a crise do gênero romanesco, associado (e correlacionado) desde seus primórdios à ordem democrática e suas oscilações.[1]
Ora, não faltam declarações do autor acerca de sua tentativa de criação de uma obra-mundo e dos princípios de composição que lhe impulsiona: desde sua noção de que seus livros são um esforço para (nas suas palavras) “estruturar um delírio” até à dinâmica de um “furor metafísico” que lhe induz a uma compactação da angústia e dores do mundo nas centenas de páginas de um romance.
Nesse sentido, Lobo Antunes se inscreve na égide de escritores contemporâneos “sombrios”, cujas temáticas e convenções formais buscam uma desativação (ou por vezes implosão) dos recursos narrativos praticados nos últimos dois séculos. Assim, ao lado de um László Krasznahorkai e de um Mircea Cărtărescu, Lobo Antunes trabalha com uma linguagem “deformadora” (trataremos disso pormenorizadamente adiante), que, no entanto, é o substrato próprio para clarões, relampejos e vislumbres de outras ordens do real – ordens muitas vezes imperceptíveis às nossas categorias cotidianas de percepção.
À vista disso, nos romances de autores dessa estirpe, nos deparamos com infrações e infiltrações dos sistemas simbólicos de segurança do ser humano, isto é, vemos pelas suas fissuras, seus hiatos, por angulações obscuras e pontos cegos o etos formado por convenções, referências e valorações que não são “naturais” e que não obstante constituem dinâmicas funcionais de nossa vivência em sociedade. Esses romancistas são, pois, demiurgos que erigem e desmoronam mundos. Por conseguinte, a distorção sintática (e uma imagética anômala e por vezes aberrante) em suas obras implica e reflete a abolição de um mundo: seus “apocalipses” seriam precisamente a dissolução dessas redomas semióticas, filosóficas e culturais nas quais as vozes ficcionais (e, em menor medida, os leitores) vivem.