#interludio: As grandes paixões surgem sempre da palavra escrita.
Não é fácil compor a angústia hoje em dia
Por Filipe Lima
É madrugada e me encontro num misto de canções amenas, folga irrestrita, e uma noite escura. No bairro em que moro, onze da noite já é muito tarde, e então me sinto como no velho Texas. Chego a tossir perante toda a poeira. Gosto dessa imagem gasta dos westerns. Há um cavalheiro lá fora com a mão apoiada no coldre. Fito um hipotético John Wayne limpando uma carabina, e depois passeando em círculos em cima do seu cavalo, assobiando destemido numa meia-luz, quem sabe, Trinity : titoli — a sublime balada. Uma mulher, próxima ao saloon, me lembra a Júlia. Como é bom estar envolvido, penso. De minha choupana, passo a assobiar também a Trinity, num dueto com o velho Wayne. Há sempre uma terna cumplicidade entre cavalheiros que se admiram à distância.
Mas tristemente, não há John Wayne algum. Há a noite, repito, doses de alguma bebida, e uma playlist ligada a uma caixinha. Um homem se faz nos seus momentos de introspecção, sobretudo. Certa vez, na beira de uma piscina, me dei conta de que poucos esportes são tão deliciosamente solitários como a natação. O nadador só se dá conta de maneira decisiva de que há competidores depois que bate sua mão esquerda ou direita na reta final. Até lá é sobretudo braçadas, vultos ao seu lado, e uma vontade absurda de vencer. Talvez durante uma competição, sua grande companhia seja essa obsessão em vencer que move, creio, qualquer desportista. E talvez essa vontade de vencer lhe retire totalmente a dimensão solitária, individual, desse esporte. Uma obsessão sempre nos faz companhia, espana a solidão. Uma obsessão por música, uma obsessão por baladas tristemente escritas, uma obsessão artística. E quem sabe ainda resta, ao menos na prática da natação amadora, essa espécie de auto convivência, de solidão idílica que nos prepara tão bem para adversidades. O homem que não sabe estar sozinho estará perdido nas searas da vida.
Na mesma piscina, naquele dia (bem, não importa o dia), me dei conta de que alguns dos grandes momentos que passei na vida foram sozinhos. Claro, há grandes lembranças em conjunto, momentos elevados somente pelo poder de uma companhia, mas há também a convicção de uma personalidade que precisa sempre estar exposta a um tipo de introspecção, como as caminhadas livres numa destruída cidade, ou o cultivo da escrita nas noites lívidas, refém de trovoadas. Só prometo, contudo, jamais voltar a escrever poesia — inclusive, me desculpem.
.
Estou ouvindo um Cassiano agora, e simplesmente se esvai, como num passe de mágica, toda a sensação de agradável melancolia que pairava no ambiente. A tranquilidade, esse outro modo de viver, inicia. Poucas coisas me inspiram mais à escrita do que músicas. Poucas coisas, de uma maneira geral, me impelem mais para à vida. Contudo, ouvi tanto Cassiano por um tempo que enjoei. Resisto alguns segundos, e logo mudo. Passo a canção, e como estava na opção ‘curtidas’, do Spotify, entra a Kinderszenen” Opus 14, do Schumann. Sou assim mesmo, variativo de uma maneira irritante — não que eu considere o ecletismo uma qualidade em si mesmo. Todo ecletismo denota uma espécie de ansiedade temperamental que é interessante ser deixada de lado à medida que a idade avança.