#interludio: Como Cancelar Uma Artista
"A verdadeira arte nasce ao confrontar a realidade"
Por Aleta Valente
Meu nome é Aleta. Sou uma artista visual — ou pelo menos era até ser cancelada em setembro de 2021. Meu crime? Anos de trabalho que se baseiam nas experiências viscerais de nascer uma mulher neste mundo — o tipo de experiência que deixa profundas cicatrizes.
Cresci no Rio de Janeiro, em Bangu, um bairro de classe trabalhadora, em uma família que investiu tudo o que tinha na minha educação, sabendo que eu não teria mais nada como herança. Escondi minha gravidez adolescente por cinco meses. Junto com a barriga, minha vergonha crescia — vergonha de ser a vizinha, a prima ou a amiga da escola que engravidou e arruinou sua vida tão cedo. Um filho nessa idade, pode também ser entendido como a evidência de um ato sexual, a prova de um crime. E a gravidez? Uma punição justa. Prisão perpétua.
Sempre fui incentivada a estudar, mas estudar arte aconteceu por acidente. Escolhi o Educação Artística estrategicamente, por ser um curso com baixa concorrência. Eu queria estudar algo “mais sério”, mas para ser admitida na faculdade de comunicação, precisava de boas notas no vestibular. O risco de não passar enquanto grávida significava que eu poderia ficar presa em uma vida doméstica. Ir para a universidade era a única maneira de escapar do abismo que se alargava a cada dia entre mim e o meu futuro. Havia duas provas, teórica e prática. Para a primeira, eu estava com oito meses e meio de gravidez; já na segunda, minha filha recém-nascida esperava do lado de fora do prédio da prova para ser amamentada. Quando entrei na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro aos 18 anos, já era mãe.
Lembro das primeiras aulas na faculdade, dos meus seios vazavam leite, das noites acordadas, divididas entre cuidar da minha filha e terminar trabalhos. Equilibrar a maternidade e as demandas acadêmicas foi um desafio do qual eu saí vencida. Nunca tive problemas com os estudos antes, mas na universidade enfrentei inúmeros, muitas ausências e reprovações. Não consegui me integrar plenamente à vida na universidade, o que resultou em baixa autoestima acadêmica. Para continuar estudando, tinha que trabalhar. Desde meu primeiro semestre trabalhei durante a noite em eventos, bares e restaurantes. Mais adiante consegui trabalhos na minha área de estudo e dividia meu dia entre as aulas e trabalhos em centros culturais, galerias e museus, tudo isso somado as horas do dia atravessando a cidade da zona oeste até o centro e a zona sul. Ao chegar em casa depois de um dia cheio ainda executava as tarefas domésticas e cuidava da minha filha também. A vida não foi nada fácil durante esses anos. Durante 10 anos me dividi entre a maternidade, o estudo e subempregos. Até que em 2015 desisti de vez da graduação que nunca cheguei a concluir, mas nesse processo iniciei meus projetos autorais, que expressam em grande parte as experiências vividas nessa época.
Através das redes sociais comecei a ganhar atenção da classe artística, mas por longos anos o reconhecimento não significou ganho financeiro. Ao mesmo tempo que existiam dezenas de teses acadêmicas teorizando sobre o que eu estava produzindo, eu seguia sem o básico, incapaz de sustentar minha própria filha, vivendo com ajuda de uma tia.
As coisas começaram a mudar em agosto de 2019, quando recebi o maior prêmio brasileiro de fotografia contemporânea, a Bolsa Zum do IMS. Em novembro, abri minha primeira exposição solo, intitulada “Superexposição”. Meu trabalho ganhou maior notoriedade, foi estampado nas páginas culturais dos maiores jornais do país, minha exposição foi considerada uma das dez melhores do ano, e isso se refletiu nas vendas. Minhas obras começaram a integrar coleções nacionais e internacionais.
No início de 2020, com o dinheiro das minhas primeiras vendas, aluguei um apartamento bem no centro da cidade. Sempre morei longe, bem distante das paisagens que ilustram os cartões-postais, dos equipamentos culturais e das oportunidades em geral. Isso me motivou a fazer um documentário chamado “Av. Brasil 24 Horas” sobre o fenômeno da “migração pendular”, que descreve o deslocamento diário de trabalhadores pela cidade — algo que no Rio de Janeiro pode levar até um quarto do seu dia. Chegar a esse momento da vida, onde eu me mantinha com o meu trabalho de arte foi uma grande conquista. Eu tinha 34 anos, com uma carreira que parecia promissora, uma casa e pela primeira vez na vida eu podia prover segurança a minha filha. As coisas pareciam estar indo bem, ao contrário de todas as expectativas, até que a pandemia chegou e tudo foi paralisado.
A sensação era de que cheguei tarde demais a uma festa, e o DJ desligou a música justo quando alcancei na pista de dança. Eu passei a morar ao lado de uma estação de metrô, mas a cidade havia se tornado fantasma. Como o ambiente digital era meu habitat, não me faltaram convites para projetos. E assim continuei, esperando que o mundo reabrisse para que eu finalmente pudesse aproveitar a cidade, os teatros, as salas de concerto e as praias a uma curta distância de uma caminhada.
Até que em setembro de 2021, a Feira de Arte do Rio, marcou a primeira grande reabertura do circuito de arte pós-pandemia. Eu estava em uma festa privada no estúdio de um artista quando fui acusada de “transfobia”: uma pessoa do sexo masculino que se identifica como mulher me encurralou e me ameaçou agressão física caso eu não deixasse o local. Era alguém com quem eu nunca tinha visto antes; não sabia nem o nome, nem mesmo reconhecia de outro lugar. Minha posição sobre as teorias de auto identificação de gênero eram conhecidas no mundo da arte. Há anos eu me opunha publicamente, até mesmo em entrevistas impressas onde criticava abertamente, mas nunca me dirigi a um indivíduo; meu ponto era a análise de uma teoria que eu identifico como prejudicial para as mulheres. Por algum tempo, recebi acusações desse tipo online, geralmente vindo de um nicho específico de artistas acadêmicos: o que por si só já era estressante o suficiente, mas não passava de um punhado de bullies. Mas naquela festa as coisas escalaram para intimidação física e isso ultrapassou todos os limites do que eu estava disposta a tolerar.
Escrevi um texto público sobre o que havia acontecido e o que se seguiu foi ainda mais absurdo: listas de pessoas que me seguiam ou curtiam minha postagem mencionada circularam na internet. Não satisfeitos em me ameaçar, os agressores ameaçaram terceiros, pessoas próximas a mim. Perdi a conta de quantas pessoas foram assediadas por me seguirem no Instagram, mulheres em sua grande maioria relataram ter me deixado de seguir por medo. Fanáticos procuraram os empregadores dos meus seguidores no LinkedIn. Tive que deletar todas as fotos online em que aparecia com amigas, para protegê-las de ataques. Páginas e mais páginas replicaram meu nome com os adjetivos transfóbica, racista e até nazista. Ameaças de morte inundaram minha caixa de entrada, sempre gráficas, com muito ódio direcionado à minha vagina, a que se referiam como “buceta suja”. Meu endereço foi publicado no twitter, enquanto pessoas comentavam o quão ansiosas estavam para me ver em um vídeo apanhando. Outro alvo de ataque era minha boca, recebi mensagens onde diziam que cortariam minha língua e arrancariam meus dentes. O perfil da galeria que representa meu trabalho recebeu inúmeras mensagens, com "artistas" pedindo que minhas obras fossem queimadas ou pelo menos para que a galeria deixasse de me representar. Houveram tentativas de derrubar minha conta de instagram e sucessivas tentativas de hackeamento da minha conta de email. O próprio modus operandi denuncia quem eram os fascistas neste caso, mas parece que as pessoas perdem a capacidade de interpretar a realidade quando se tornam parte de uma manada. Pessoas se sentiram livre para ameaçar outras por inbox caso elas tivessem alguém entre seus seguidores que ainda seguisse minha página. Curadores ameaçavam artistas, artistas ameaçavam curadores e textos curatoriais foram negociados como pagamento pela heresia de ter me dado um “like” de apoio. Uma pessoa que era até então minha amiga foi interrogada por 8 horas por um grupo de pessoas que ela ainda considera amigos e me culpabilizou pelo acontecido. Toda a sorte de coisas aconteceram a partir de uma acusação de “transfobia”, incluindo o assédio sexual de uma mulher, que se sentiu forçada a beijar um homem que se identifica como mulher, ameaçada por ser minha amiga.
Nos primeiros dias, fiquei paralisada; tudo tomou proporções gigantescas. Eu já tinha visto isso acontecer antes, mas nunca estamos preparados para nossa própria fogueira. A galeria com a qual trabalho inicialmente me ofereceu apoio jurídico, mas, sob pressão, eles emitiram um "mea culpa" onde praticamente pediam desculpas aos difamadores. A sensação era de que tudo o que eu havia construído com sacrifício e dedicação estava desmoronando. No segundo dia, percebi que não podia sair do meu prédio. Tentei sair para comprar comida, mas fui tomada pelo pânico. Pedi ajuda a um estranho, que agora é meu melhor amigo, e ela veio à minha casa e me ajudou a fazer as malas. Saí da cidade e fiquei fora por dois meses.
Amigos desapareceram como linhas de cocaína em um after. Alguns permaneceram um pouco mais, tentando me convencer de que eu realmente havia feito algo muito errado e que a violência que sofri foi resultado das minhas ações. Acabei me desconectando de ambos os grupos, para manter minha sanidade. Foi mais fácil com o primeiro grupo, pois foi um caso claro de escolher descaradamente vestir a camisa do time vencedor. Já com o segundo grupo, as coisas se complicam; eles mostravam preocupação e afeto, sabendo que eu não merecia ser alvo de violência, mas para permanecerem integrados ao meio, escolhem acreditar na narrativa de que a errada nessa história era eu.
Essas pessoas ao mesmo tempo demonstraram se preocupar comigo, não ousaram romper laços com aqueles que me atacaram. Se permitissem entender o que estava acontecendo, teriam que tomar uma posição ou admitir serem covardes. É um processo triste, ver as pessoas que você amava desistindo de você. Posso imaginar o quão difícil foi; quanto mais próximos estavam de mim, mais eram atacados, e mais explicações eram exigidas. E esses ataques colocariam seu trabalho e sobrevivência em risco. A questão é que você prova ter princípios não quando tudo está indo bem, mas quando surgem problemas. Apesar de tudo, foi uma experiência de vida das mais profundas, pois aprendi muito sobre as relações humanas. Reconheço hoje o quanto fui ingênua e que até esse momento vivia cercada por pessoas oportunistas a quem eu chamava de amigos.
Fui acusada de crimes, mas não houve nenhum boletim de ocorrência registrado contra mim. No entanto, as acusações me tornam alvo de abusos: difamação, perseguição, ameaças de agressão e morte. Toda violência nessa situação denota a incapacidade argumentativa de um grupo que procura de forma extrema silenciar alguém que apresenta ideias dissidentes. Então como em um passe de mágica discordar de uma teoria se torna uma ameaça a vida de um grupo, mas ameaças gráficas são entendidas como mero dissenso teórico.
Parece que vivemos em uma suspensão da realidade, onde tudo é entendido através de um novo dogma. As mulheres deixaram de existir sob essa nova perspectiva, reduzidas a abstrações. Definidas agora como um conjunto de acessórios: maquiagem, próteses, cílios postiços, brincos, calcinhas, vestidos saltos e perucas. Somos compráveis.
Estamos diante de um movimento neo-criacionista: antes saída da costela de Adão, agora somos criadas novamente a partir de um homem, só que dessa vez através de processos cirúrgicos.
No Brasil, atualmente, ninguém na mídia mainstream desafia as teorias de gênero. As pessoas no mundo da arte parecem aceitar prontamente a teoria de que há uma essência que define o que é ser mulher e que o sexo de alguém pode ser modificado alterando documentos ou através de cirurgia. Ou mesmo que crianças nasceram no corpo errado e devem passar por procedimentos cirúrgicos agressivos, amputando partes saudáveis de seus corpos, para encontrar sua "forma verdadeira". Para mim,parece mais um culto, mas nunca discriminei uma pessoa que pensa dessa forma; certamente nunca ameacei ninguém com agressão por esse motivo. E quando fiz uma declaração pública através das minhas redes sociais denunciando ter sido vítima de violência por anos, fui acusada de perpetuar ódio.
Meu maior medo não é conseguir lidar com a experiência; parece maior do que eu. Tentei explicar meus pontos de tantas maneiras diferentes, mas ainda sou acusada de ser movida por preconceito. No fundo, é uma maneira de apagar tudo o que criei — uma forma de dizer: "Veja, a gente sempre soube, ela é apenas uma vadia burra". Um amigo faz um tempo me contou que estava em um apartamento no Leblon onde a elite artística do Rio de Janeiro me chamava de ignorante. Tenho a teoria de que incomodei essa gente. Filhos de escolas caras, criados a base de Sustagen para serem o centro das atenções, se sentiram desconfortáveis quando comecei a crescer no mundo da arte. Sou um problema para essa gente; fiz muito com muito pouco, e isso esfrega na cara delas o quão medíocres são. As acusações de transfobia são a desculpa perfeita para expressar seus preconceitos de classe. A classe dominante quer um artista periférico como um token, não alguém que não pense de forma independente. Ser mulher torna tudo ainda mais complicado.
Li em algum lugar que o cérebro entende o cancelamento como dor física. Sendo assim, eu morri mil vezes. Como um mito grego onde você é torturado por um pássaro comendo suas entranhas, mas no dia seguinte você acorda regenerado para sofrer novamente, num ciclo infinito. O sono se tornou minha fuga; acordar era o começo de um pesadelo. Considerei o suicídio inúmeras vezes, mas como uma mãe se mata? Como eu não pensaria na minha filha se somos só eu e ela? O suicídio não era uma opção, mas os pensamentos persistiam.
O tempo passou, e as pessoas começaram a perguntar se o cancelamento havia terminado também. Infelizmente, não havia terminado. Embora não receba tantas ameaças hoje, os convites para projetos secaram. Empregos no mundo da arte são raros, se não inexistentes, e associar-se a mim parece ser considerado crime. Continuo tentando manter a cabeça erguida, mas está cada vez mais difícil.
Depois de tudo o que dei à arte, agora me vejo incapaz de investir na educação da minha filha. Dói ainda mais saber que, por segurança, ela nega ser minha filha quando perguntada na rua. Eu desejava que o caminho dela fosse mais fácil que o meu, que como mãe, eu pudesse abrir portas para ela. Em vez disso, meu nome torna sua jornada mais difícil, e isso me deixa profundamente triste.
Minha vida adulta inteira foi dedicada a este campo, e agora me vejo dividida entre continuar resistindo aos abusos ou desistir e encontrar um novo caminho. Que caminho seria esse, no entanto, se tudo o que sei fazer na vida é isso? Sei que há muita gente boa que se mantém em silêncio diante desse show de horrores, mas fazer arte requer antes de tudo coragem.
Por que voltei aqui nesse texto lá em 2004 para falar de um acontecimento atual? Porque ser mãe é um fato importante, na minha trajetória como pessoa e artista. Porque o preconceito que vivi foi por ser uma pessoa do sexo feminino, não por me identificar com estereótipos de gênero. Agora, uma tendência teórica hipster me pede para negar essa experiência definidora da minha história. Esperam que eu negue minha humanidade, sorria e abaixe a cabeça. Que eu permaneça em silêncio diante de absurdos que, respaldados por dois ou três teóricos, ganharam o título de verdade absoluta.
A experiência de ser cancelada expõe não apenas a fragilidade da liberdade de expressão no mundo artístico, mas também a profunda vulnerabilidade das mulheres que ousam denunciar a violência masculina. Apesar dos imensos desafios e do isolamento, continuo acreditando na importância do meu trabalho e na necessidade de um diálogo aberto e honesto sobre as questões que moldam nossa sociedade. Minha jornada não é apenas um testemunho das adversidades enfrentadas, mas também uma afirmação da resiliência e força necessárias para continuar criando e resistindo. Mesmo diante da censura e da intimidação, escolho não ficar em silêncio, pois a verdadeira arte nasce ao confrontar a realidade, por mais difícil que seja.
Aleta Valente é artista plástica. Você pode conhecê-la melhor no Substack dela.
O texto acima foi publicado anteriormente aqui.
Parabéns Aleta! Parabéns por não desistir!
Como mulher e como ser humano, agradeço e admiro quem não é covarde!
Tudo tem seu tempo e você plantou a vida toda, ainda haverá ótima colheita!
Não desista! Insista!
Não tenha medo, medo é uma arma contra nós mesmos!
🙌❤️🙌
"Eu desejava que o caminho dela fosse mais fácil que o meu, que como mãe, eu pudesse abrir portas para ela. Em vez disso, meu nome torna sua jornada mais difícil, e isso me deixa profundamente triste."
Isso me doeu na alma.
Sempre me pergunto onde está a tal da sororidade nesses momentos.
Te desejo vida longa, muita saúde e o sucesso que você merece.