#interludio: Entre Reféns e Ossos
Uma série de reportagens exclusivas sobre a perseverança em tempos de terror
[Leia a primeira parte da série]
*por Vivian Schlesinger
1.
Chegamos na quarta-feira. Não fossem as fotos dos sequestrados ao longo da passarela de chegada ao aeroporto, você pensaria que são tempos normais. Muita gente viajando, lojas abertas, trânsito quase como São Paulo. No caminho para a casa da Julie, bandeiras. Muitas. Enormes. Janelas, varandas, fachadas dos prédios ultra-high-tech, bandeiras penduradas na vertical, de dois andares de altura. De oito. De dezoito. Nas pontes, fotos: um filho, um irmão, uma avó. Há 121 dias, sequestrados, não se sabe se estão vivos, ou se já estavam mortos quando foram levados, porque aqueles selvagens tiveram esse requinte de bestialidade: levaram reféns vivos, mortos, e até partes de corpos. A cabeça de um menino foi colocada à venda em Gaza por 10 mil dólares. Por falta de mercado, ficou no freezer de um restaurante até ser encontrada pelos soldados israelenses.
Mas não há como a vida para lembrar-nos de viver. Ao ver nossos netos, minha filha, meu genro, levando vida normal, trabalhando, jogando basquete ou hipnotizados no tik-tok - tanto faz - qualquer sinal de normalidade é uma alegria. Conversamos, rimos, eles ainda falam com carinho dos dias que passaram no Brasil há pouco tempo. Surpresa gostosa: estão em contato com os amigos do Alef, a escola que frequentaram enquanto estavam em São Paulo. Noam, quase 14, quer ir para o Brasil, ir à escola. Você quer ir às aulas? – me espantei. Não, vovó, quero ver meus amigos! Ah, entendi. Vida.
Daniela me mostra o último skin care que ela absolutamente precisa comprar para sobreviver. Um concealer. Para conceal (esconder) o quê?, penso, mas não digo. Seria um absurdo uma avó que não entendesse que aos quase 12 anos aquele concealer é indispensável. Mesmo sem ele, ela segue feliz. Uma adolescente normal a mais no mundo. Com Noam acabamos falando de escola, daí para História, da matéria para o professor que ele parece adorar. Estudaram a Revolução Francesa recentemente, Noam tem perguntas ótimas. Já gostei do professor. Não dita a lição como está no livro, fala sem parar sobre muitas coisas e para a aula no momento do gancho – quando vai falar quem venceu entre Napoleão e a Prússia, diz, “na próxima aula vocês saberão!” – genial, o cara. Claro que os meninos poderiam simplesmente google it, mas ouvir desse professor é muito mais interessante. Uma joia dessas a gente encontra poucas vezes na vida.
Isso foi na quarta, logo após a chegada, direto do aeroporto. Então viemos para o hotel tentar dormir um pouco. O dia seguinte seria cheio de desafios.