#interludio: Evelyn Waugh Contra a BBC
Uma aula de como responder todas as perguntas impertinentes da imprensa, de modo breve e rasteiro, sempre com respostas carregadas de sarcasmo
Por Adaubam Pires
Era uma oportunidade muito boa para deixar escapar: 25 minutos de Evelyn Waugh. Ao preparar o artigo anterior, topei no YouTube com uma entrevista dada pelo romancista inglês em 1960 para a BBC. Graças às maravilhas da internet, a entrevista encontra-se disponível praticamente na íntegra1. É uma daquelas jóias raras do mundo digital: não é todo dia que se acha um vídeo longo protagonizado por um escritor nascido no início do século XX — quantos vídeos com mais de 20 minutos de depoimento ininterrupto a gente acha, por exemplo, de Carlos Drummond de Andrade, nascido em 1902, um ano antes de Waugh?
Dando continuidade, portanto, decidi trazer a transcrição completa dessa entrevista de Evelyn Waugh. Trata-se da oportunidade de conhecer pelas palavras do próprio escritor um pouco de sua vida e obra, mas não só isso. Ela também constitui um raro vislumbre do extraordinário temperamento de um dos maiores prosadores da língua inglesa do último século.
Como eu já disse, Evelyn Waugh não era um sujeito fácil. Nosso “malvado favorito”, como bem definiu Ronald B. Griggs, o maior tradutor de Waugh por essas bandas. Irascível e genioso, conservador old school, o escritor havia decidido no início dos anos 50 trocar a agitação da sociedade londrina pelo isolamento de uma mansão no campo. O que o levou em 1960 a abandonar sua tão cara paz campestre para ir dar a cara a tapa em cadeia nacional num programa de televisão que mais parecia um interrogatório policial?
“Pobreza”, como explica o próprio Waugh durante a entrevista. “Nós dois fomos contratados para falar dessa forma delirantemente feliz.” Pois embora suas obras continuassem sendo editadas e vendidas, nos últimos anos de vida o escritor se viu sob pressão financeira, o que o levou a aceitar participar de entrevistas. Não devia ser fácil, de fato, manter a família de seis filhos numa ampla mansão de oito suítes, seis salas, uma adega e garagem para cinco carros.
Dizem que a entrevista de 1960 foi a estreia de Waugh na televisão. E logo diante do jornalista John Freeman, um ex-deputado do partido trabalhista inglês que havia abandonado a política para tornar-se host do programa “Face to Face” da BBC, onde cultivava a (má) fama de constranger seus convidados com seu estilo inquisitivo. Até que para um estreante, Waugh não foi nada mal.
Mas assistir à entrevista me deixou com sentimentos contraditórios. Por um lado, estava feliz de ouvir pela boca do próprio autor uma série de detalhes interessantes de sua vida e obra. Por outro, a atitude impertinente e depreciativa do entrevistador para com o seu entrevistado me deixou aborrecido e frustrado. Aborrecido porque as perguntas eram dirigidas a Waugh de maneira grosseira e afrontosa, sem a menor preocupação em estabelecer uma relação minimamente amistosa com o entrevistado. Frustrado porque, no afã de ler suas perguntas previamente formuladas, o entrevistador passava ao próximo assunto sem deixar Waugh se estender em nenhum tópico, deixando a sensação de que, por vezes, nem fazia questão de ouvir o que Waugh tinha para dizer. Como perder a oportunidade de deixar um dos maiores prosadores da língua inglesa se aprofundar e divagar liricamente em suas respostas?
Essa importunação é tratada por Waugh de forma cortês — até certo ponto. A hostilidade instintiva de Waugh com a falta de decoro demonstrada pelo entrevistador começa a assumir a forma de respostas cada vez mais evasivas ao longo da entrevista. Quando percebe que o entrevistador estava mais interessado em atacar seu catolicismo e seu status social do que efetivamente tratar de seus romances, Waugh passa a responder todas as perguntas impertinentes de modo breve e rasteiro, sempre que possível com respostas carregadas de sarcasmo. E são essas respostas malcriadas de Waugh que fazem essa entrevista valer ouro.
Tentativas psicobiográficas do entrevistador, empenhado em analisar o escritor a partir de traumas de infância, são completamente rechaçadas: “Eu tive uma infância absolutamente idílica e feliz. É por isso que tenho tão poucas lembranças dela.” A acusação de abandono dos amigos e ideais estetas da época de faculdade é rebatida de modo veemente: “Na meia-idade, não é preciso vestir roupas extraordinárias para apreciar arquitetura.” Quando o entrevistador sugere que Waugh seria um satírico religioso dedicado a fustigar a decadência do mundo moderno, a resposta é devastadoramente cínica: “Oh, não, não, não, não. Estou apenas tentando escrever livros.”
Vamos ao que interessa: na seção seguinte, a íntegra da transcrição da entrevista, traduzida por este que vos escreve. Quando necessário, acrescentei links no corpo do texto no intuito de ilustrar este ou aquele ponto. Incluí também alguns comentários (entre colchetes) de modo a elucidar certas soluções empregadas na tradução. Idealmente, a entrevista merece ser lida enquanto se assiste ao vídeo, ao menos para ver os sorrisos ferinos de Waugh que acompanham algumas das respostas.
Desejo a todos bons minutos na companhia de Evelyn Waugh. E que, assim como a anterior, espero que esse texto sirva de incentivo para você começar logo a ler a obra do romancista inglês, caso ainda não o tenha feito. E antes que me perguntem, minha recomendação é começar a leitura de Waugh por seu primeiro romance, Decline and Fall2, de 1927 — uma impagável sátira da sociedade inglesa dos anos 20 — e daí por diante seguir pelos demais romances em ordem cronológica.