#interludio: José Olympio ou morte
A continuidade da literatura brasileira está ameaçada
Por Fernando Lima Cunha
REZA A LENDA QUE, NO RIO DE JANEIRO DE 1940, um ou outro jovem chegava ao balcão de certo estabelecimento à Rua do Ouvidor, 110, e procurava pelo proprietário. O dono se apresentava, e o rapaz da vez — ou moça, ocasionalmente — deixava nas mãos do homem detrás do balcão uns papéis datilografados, um original inédito.
O proprietário atendia pelo nome de José Olympio Pereira Filho, e o estabelecimento, Livraria José Olympio Editora. O rapaz em questão, entre acanhado e apreensivo, deixava o manuscrito sob a custódia do livreiro-editor, que combinava o seguinte: irei olhar, jovem; deixe seus contatos que, caso tenha interesse pela publicação, lhe retornarei.
E, de fato: seu José Olympio olhava e retornava a muitos daqueles moços que, convocados de volta à livraria, assinavam os papéis e saíam de lá com um cheque de adiantamento. Por essa rotina aparentemente prosaica, o dedicado livreiro tornou-se, entre as décadas de 1930 e 1950, o maior editor de literatura do país.
Há certo consenso em atribuir ao mineiro José Olympio a disseminação do romance regionalista em escala nacional, sem contar a publicação de clássicos da literatura universal no território, levando ao leitor brasileiro, pela primeira vez, obras canônicas para quem não podia ler caras edições em francês ou inglês.
Tempos românticos, aqueles. O exemplo de seu José Olympio tornou-se lenda na história do ramo editorial brasileiro. Sem sua iniciativa pessoal, tocada por algum ímpeto misterioso — misterioso até que alguém a explique numa biografia faltante e necessária — o país jamais teria acesso a grande parte de sua própria literatura, a seus próprios escritores, e portanto, a sua própria cultura. Tão importante foi aquele trabalho, motivado a princípio por apenas um punhado de sins — “sim, eu publico” — que boa parte daqueles autores e livros circulam ainda hoje, no século 21, fornecendo um retrato do Brasil para as gerações que se sucederam desde então.
Além de tudo, o bom editor não apenas publicava, mas dialogava, era amigo dos escritores. Dava-se bem com um sanguíneo e reacionário José Lins do Rego e com um introvertido e comunista Graciliano Ramos; recebia uma conservadora Rachel de Queiroz e atendia um anarquista Carlos Drummond de Andrade. Que importava a ideologia? Importava a arte: homem de consciência universal, José Olympio encontrou-se com o universo em maio de 1990.
O papel do editor
A história de José Olympio serve de preâmbulo para ilustrar — no caso, por frontal oposição — o que tem acontecido no provinciano mercado editorial brasileiro. Provinciano: embora paquidérmico em extensão territorial e população, do ponto de vista da difusão cultural o país tem a dimensão de um camundongo em termos proporcionais.
Em muitos aspectos o Brasil não passa de mastodôntico vilarejo. Ora, o que temos aqui? Três bancos privados, dois estatais; nem meia-dúzia de canais de tevê; quatro companhias de telecomunicação; e, por fim, duas grandes editoras, para ficarmos nesses exemplos. Em termos absolutos, o país de 2024 não é tão diferente daquele de José Olympio nem muito mais auspicioso; só mais complicado e perdido na loucura globalizante dos dias que correm.
Voltando às editoras, lembro de duas grandes casas que dominam o país. Elas dão o tom do mercado editorial e servem de biruta de aeroporto às outras, médias e pequenas, ao indicar para onde o vento sopra: se elas publicam tal e qual, as outras, sem instrumentos próprios de aferição, publicam o mesmo tal e qual, vão a reboque. Há por outro lado editoras pequeninas que, por oposição às gigantes, publicam o que aquelas ignoram solenemente, mesmo havendo demanda: o que essas bravas editorazinhas fazem é comunicar-se diretamente com o público desprezado pelas grandes e oferecem alguma obra muito desejada, às vezes requerida, seja nacional ou estrangeira. Neste caso, as grandes são referência por exclusão.
Contudo, e a exemplo do seu José Olympio, o editor brasileiro desempenha um papel que ultrapassa a mera estratégia mercadológica. A decisão de publicar uma obra, mesmo nessas companhias fatiadas a stakeholders, passa também por fatores muito humanos, subjetivos e de boa vontade, além de empenho pessoal e desejo de fazer dar certo. Há muito de preferência pessoal por baixo dos pitchs e drafts que orientam os projetos dessas companhias.
Cá de minha choupana, não me canso de conferir os lançamentos dessas editoras imensas, especialmente a prateleira literatura brasileira: a julgar pela amostra, me pergunto que valores andam a nortear os senhores e senhoras que sacam as canetas e redigem os contratos. Quero dizer, me pergunto que tipo de obra eles esperam receber, sob quais critérios, para então publicar aqueles lançamentos que ultrapassam a dezena mensal. Faça as contas, é livro pra chuchu anualmente. E, pelo que consta, o que sempre vai ali?