Por Filipe Lima
Eventualmente perco o sono. Não ocorre sempre. Para uma pessoa que já teve certas pretensões culturais, fujo a dois clichês comuns em grandes estetas, e constato levemente constrangido: durmo muito bem, e sou pouco dado a tristeza. Dou para minha newsletter o nome de melancólico e já me sinto um pouco culpado. Uma espécie de traição intelectual ao leitor, e a mim próprio. Sinto, na verdade, uma beatitude acachapante, atordoante pela vida — um bando de pássaros sob os ares de minha cidade me deixa alegre por minutos, até mesmo horas. A grande poesia, como a grande sensação, deriva sempre da natureza.
Cultivo, então, essa felicidade rara, de bêbados.
Porém divago. Todo texto meu é esse ensaio, ou crônica, que sobrevive por entre digressões. Coloco os pés para cima, ligo ‘O lado quente do ser’, escrita pelo Antonio Cícero, assobio sem pressa a melodia. É uma grande canção sobre mulheres.
No youtube, o bandido-leitor, o notório assaltante de bancos, conhecido por Marcola, tem um diálogo com sua esposa vazado. Assisto a conversa. Ele está num presídio, com seu aspecto de marginal de cinema nacional dos anos 1970 (de um Babenco do auge, de um Miguel Faria Jr.), ao telefone com sua mulher, que está do outro lado de um vidro. Nos comentários, espectadores ressaltam que há poucas gírias na fala do delinquente, e de como é uma fala fluida, bem embasada. Eu concordo com tudo, meio envergonhado por reconhecer uma qualidade que seja em marginais.
O vídeo mostra o bandido flertando com a mãe de seu filho, como se fossem um casal de namorados. Ela elogia seus braços, ele elogia a sua forma física. Até que eu paro, comovido, por notar que um presidiário pode ter características parecidas comigo: Marcola lamenta a ausência de cartas de amor, entre sorrisos, e de fotos bonitas. A mulher entende o tipo de fotos que ele deseja, e alerta o marido que as fotos err, de putaria, não entram no presídio. Ele lamenta, cabisbaixo.