#interludio: O Olhar de Górgona (1)
Um ensaio sobre o filme "A Zona de Interesse", de Jonathan Glazer
Auschwitz on my mind
Era uma vez um rei que incumbiu seu mago favorito de criar um espelho mágico. Esse espelho não mostrava o reflexo da pessoa, e sim sua alma - mostrava o que ela realmente era.
O mago não podia se ver nesse espelho sem desviar o olhar. O rei também não podia se ver nele. Nem os cortesãos. Uma arca cheia de objetos preciosos foi oferecida a qualquer cidadão desse país pacífico que fosse capaz de se ver no espelho por sessenta segundos sem virar o rosto. E ninguém conseguiu.
Creio que o KZ é esse espelho. O KZ é esse espelho, mas com uma diferença. Não se consegue desviar o olhar dele.
A Zona de Interesse, Martin Amis. Trad. Donaldson Garschagen (Pag. 52)
“Ele entendeu Auschwitz”. Foi o que minha mulher me disse, tão logo as luzes do cinema se acenderam. Não sei se é possível entender Auschwitz, mas Jonathan Glazer sem dúvida chegou perto. Muito perto. Minha mulher disse isso pois, em 2018, nós visitamos o antigo campo de concentração e extermínio (as fotos que ilustram este ensaio e documentam a nossa travessia por lá são de minha autoria).
Há anos que queria conhecer a Polônia, e passamos algumas semanas no país. O território polonês é atravessado por cicatrizes dos períodos nazista e soviético, e é impossível permanecer muito tempo em Varsóvia, por exemplo, sem se deparar com alguma menção ao passado da Segunda Guerra Mundial. Nada, no entanto, nos preparava para Auschwitz, que fica no sul do país, em uma região rural. Mas uma impressão inicial que permaneceu conosco, tão logo atravessamos o portão com os dizeres Arbeit Macht Frei, é o quão bonito é o lugar.
Entramos por Auschwitz I, que antes da ocupação nazista era um quartel para oficiais do exército polonês. Há diversos prédios de tijolo, com grandes janelas, ruas pavimentadas e muito, mas muito verde. Estávamos em pleno verão europeu, e o calor era acachapante. Mas, por incrível que pareça, caminhar por Auschwitz I é agradável. Isso não é bem verdade, no entanto, pelo simples fato de que é impossível não perceber as cercas de arame farpado que os nazistas colocaram por toda a parte, e tão logo adentramos um dos prédios, podemos começar a vislumbrar como era a vida dos prisioneiros naquele lugar.