#interludio: O Olhar de Górgona (6)
Um ensaio sobre o filme "A Zona de Interesse", de Jonathan Glazer
[Leia a penúltima parte do ensaio]
Zona Familiar
A realidade pode parecer significar mais do que ela mesma - ter sido “possuída” - mas ainda não podemos ter certeza disso. Os acontecimentos estão desafinados, mas ainda não totalmente discordantes. E assim o observador tem que buscar a confirmação de outros.
- Paul Coates, The Gorgon’s Gaze.
Logo após o término da Segunda Guerra Mundial, e tendo início logo no começo da década de 1950, o cinema alemão (do lado Ocidental, isto é) viu surgir um novo gênero cinematográfico que logo se tornou extremamente popular: o Heimat. A tradução literal para o português é “pátria”, mas ela não abarca todos os significados do termo. Em inglês, a tradução é mais próxima: “Homeland”. Lar e terra, casa e natureza, a vida doméstica germânica está aliada aos grandes rios, montanhas e florestas das nações alemãs e austríacas - tudo isso está englobado no termo Heimat.
Tais filmes tiveram seu auge no final dos anos 1940 até os anos 1960, e eram inteiramente destinados ao consumo doméstico. Dramas leves e comédias dão a estrutura narrativa para filmes que abordam a vida familiar e doméstica alemã, situando-as em ranchos em meio à natureza ou em cidadezinhas. Nem preciso dizer que estes filmes são marcados por um Romantismo açucarado, uma idealização profundamente kitsch da vida e do caráter nacional.
Esses longas são, obviamente, uma forma de escapismo. Mas um escapismo realmente explícito. Devastada pela guerra, com suas cidades em ruínas, e com o território nacional dividido ao meio por duas grandes potências - os Estados Unidos e a União Soviética - e ainda por cima responsável por um crime sem precedentes, é de se imaginar que, no pós-Guerra, a cultura de massa alemã fosse ser marcada por produtos e peças que pudessem providenciar um refúgio da realidade. Mas o Heimat filme não providencia isso, simplesmente: eles são filmes nostálgicos, que transportam o público para um mundo idealizado, uma Alemanha antes de sua queda. Uma Alemanha de chalés de madeiras, aventuras na floresta, escaladas nas montanhas, onde os vizinhos são simpáticos e prontos a receber seus conterrâneos com fatias de Strüdel ou, talvez, um singelo pãozinho com geleia. São filmes manufaturam um passado onde a identidade nacional alemã não estava fraturada, onde eles eram, literalmente, senhores do seu próprio lar. O céu era azul, pontilhada por nuvens brancas gorduchas, os campos eram verdes, uma natureza alimentada pelo majestoso Danúbio.