#interludio: O Retorno de Emily
Uma série de reportagens exclusivas sobre a perseverança em tempos de terror.
*por Vivian Schlesinger
1.
Alguém devia ter caluniado Josef K., porque ao acordar, certa manhã, recebeu aviso de que seria julgado por cometer genocídio, sem que tivesse feito alguma coisa de mal. Atordoado, vestiu-se e foi ao fórum para descobrir onde estava o engano. Depois de atravessar um túnel escuro, labiríntico, cheio de armadilhas explosivas, encontrou uma carta assinada em código com a chancela da África do Sul. Nela também se via o brasão da Coreia do Norte, do Irã, da China e outros brasões menores, inclusive um do Brasil. Josef K. finalmente decifrou o engano: o datilógrafo, no lugar da palavra “agressor”, escrevera “vítima”, e vice-versa.
Diferentemente do Josef K. de O processo, de Kafka, esse nosso Josef K. empenhou-se em uma luta de morte e conseguiu, a enorme custo pessoal, ganhar algum tempo de sossego para continuar a se defender (enquanto não chega outra acusação, invertendo vítima e algoz). Kafka morreu há 100 anos, e nos deixou de herança a certeza de que a realidade é absurda e que o absurdo é real. Verdade hoje, como há 100 anos.
2.
Enquanto isto, meu esposo Claudio e eu estamos nos acostumando a essa vida de operário de fábrica: dirigir uma hora e meia para chegar ao trabalho, dobrar milhares de sacos plásticos, montar centenas de caixas de papelão, intervalo, mais sacos plásticos ou caixas, almoço, tarde igual à manhã. Na fábrica de sacos plásticos nos colocaram juntos para fazer o trabalho que normalmente seria feito por uma pessoa só. Acho que ficaram com dó dos velhinhos... mas já que essa é a missão, dobramos plásticos como eles nunca foram dobrados, com precisão milimétrica de um casal com TOC. A diversão ficou por conta do esforço em adivinhar os comandos em russo na máquina. Russo? Exato. Desde 1989 imigraram para Israel quase um milhão e meio de cidadãos da União Soviética (devem ter se entediado daquela vida segura, da liberdade, da fartura). Hoje, um em cada quatro israelenses é ucraniano ou russo da Geórgia, do Uzbequistão, da Bielorússia. Na brincadeira, dizemos que a segunda língua mais falada em Israel é o hebraico.