Por André Silva de Oliveira
INTRODUÇÃO
Nenhuma dúvida pode haver sobre a centralidade do liberalismo nos debates envolvendo a trajetória histórica das instituições políticas nacionais. Dois grandes grupos de intérpretes do país travam uma discussão acerba sobre como a adoção, ou não, dos pressupostos básicos do liberalismo impactou – ou, para ser mais exato, poderia ter impactado – a construção, a consolidação e a expansão da democracia brasileira. Dois grandes grupos antagônicos de intérpretes do Brasil se formaram desde então e, como se pretende demonstrar aqui, não se forjou uma agenda mínima de convergência entre ambos.
De um lado, há o grupo constituído historicamente no passado por Sérgio Buarque de Holanda, Rui Barbosa, Raymundo Faoro e, mais recentemente, por Roberto DaMatta e o próprio Marcus Melo, dentre outros intelectuais, que apontam o déficit de liberalismo como causa primordial para o agigantamento excessivo do Estado nacional e sua consequente captura e exploração por elites políticas predatórias em desfavor da população que se vê excluída dos ganhos do processo econômico produtivo.
De outro, avulta o grupo antagônico formado no passado por Oliveira Viana, Alberto Torres, etc., que estigmatiza o liberalismo, apontando-o como estranho aos valores culturais nacionais e, no limite, como o grande responsável pelo atraso econômico e, hodiernamente, pelo potencial bloqueio à participação popular nos negócios públicos. Ao eleger a contribuição teórica de Sérgio Buarque de Holanda como alvo explícito de seus ataques no livro A elite do atraso (2019), Jessé Souza filia-se à segunda tradição de cunho marcadamente iliberal, embora empreenda um declarado esforço teórico e metodológico para tentar afirmar a suposta singularidade de sua interpretação da realidade brasileira.
A discussão tem relevância autoevidente, porquanto a adoção da visão de um ou outro grupo de intérpretes resultará no modo como as instituições políticas e econômicas serão reformadas, impactando, assim, na manutenção ou na ruptura com a trajetória histórico-institucional vinculada a um passado de forte viés patrimonialista e socialmente excludente. Essa discussão tem se estendido ao longo do tempo, chegando ao tempo presente. Assim, seja na academia, seja na imprensa, intelectuais tem reverberado suas posições sobre o potencial déficit ou abundância de liberalismo entre nós, tal como se verifica do debate ocorrido, por exemplo, entre o filósofo Ruy Fausto e o economista Samuel Pessoa na revista Piauí.1
O presente artigo opta, todavia, por centrar sua análise no debate público ocorrido entre Jessé Souza e Marcus André Melo, talvez o mais emblemático e rico entre os mais recentes.
No primeiro tópico será abordada a polêmica travada entre ambos no jornal Folha de São Paulo, apresentando os argumentos de cada um na tentativa de refutar as razões do oponente. No segundo e terceiro tópicos serão discutidas respectivamente as visões sintetizadas de Melo e Souza sobre o tema proposto, enfatizando seus aspectos relevantes e eventualmente falhos. No livro A elite do atraso (2019), por exemplo, Souza critica severamente a tradição liberal interpretativa do Brasil iniciada por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil (1936) e, segundo entende, seguida por seus “epígonos” como Raymundo Faoro, Fernando Henrique Cardoso, Roberto DaMatta, etc. Por fim, na quarta e última parte, a análise crítica recairá sobre o potencial alcance dos argumentos apresentados por ambos e sua efetiva conformidade com a realidade fática. A conclusão principal sugere que se forjem pontos de interseção consensuais mínimos entre as posições antagônicas a propósito da presença do liberalismo na trajetória política brasileira.