#interludio: Raiva Em Dobro
O símbolo do Coringa como o triunfo do solitário prestes a explodir
Por Jacques Meir
Joker, alter ego e, posteriormente, a reencarnação do comediante fracassado Arthur Fleck (interpretado por um Joaquim Phoenix deslumbrante) comparece ao programa de Murray Franklyn (Robert De Niro), espécie de David Letterman ou Jimmy Fallon ficcional. De forma abrupta e lancinante, o Coringa (Joker) assassina o apresentador, explodindo sua cabeça com tiros a queima-roupa.
O Joker é a versão narcisista, o eu frustrado no espelho, que resolve se sobrepor aos objetos-alvo de seu ressentimento. Sobretudo, Fleck é uma soma de nossa raiva diante de um mundo que nos nega dignidade. Sua resposta, no entanto, violenta e disruptiva, rasga a ideia de civilização sem buscar compreensão. Ao reencarnar como Coringa, Fleck, o comediante frustrado, dominado pela presença da mãe, acovardado diante da sociedade que o atormenta, torna-se uma pessoa, ela mesma disposta a subverter a sociedade em uma espiral de loucura.
No último dia 04 de dezembro, Luigi Mangioni, estudante brilhante, de boa criação e com sonhos e uma carreira promissora no mundo das startups, surge das sombras, em uma manhã outonal de Nova York e alveja pelas costas, de modo calculado e metódico, o CEO da empresa UnitedHealthcare, Brian Thompson. O executivo recebeu três tiros, e cada projétil trazia uma palavra associada a processos dos planos de saúde que envolvem negar procedimentos a seus clientes: “delay (adiar, retardar)”, “deny (negar)” e “depose (colocar de lado)”, todos disparados por uma arma montada com partes fabricadas em impressoras 3D. O jovem Mangioni foi metódico, ensaiou sua mise-en-scène para atingir o alvo de sua raiva, após meses recluso e solitário.
Este evento é um dos marcos da Era da Raiva, um período conturbado, onde o cidadão normalmente mais impaciente, torna-se ele próprio mais insatisfeito e intolerante, disposto a mergulhar em uma espiral desmedida de ira na busca por culpados e por ações grandiosas que justifiquem sua ira e o que, ao seu ver, justifique sua tristeza e dor diante de um mundo hostil.