Por Kovács
Os velhos e as lideranças desossadas
A política faz tão mal quanto a exposição à radiação, mas, às vezes, é impossível fingir que não está acontecendo nada. A radiação arrebenta com o nosso ADN; a política, na forma atual, arrebenta com a cognição e com o raciocínio. Vivo bem ignorando a política e só abandono a minha letargia quando farejo um tema bom, que me permita dar cacetadas e rir um pouco. A saída teatral de Joe Biden da disputa pela reeleição nos EUA é uma dessas janelas. E por saída teatral entendo aquela em que o cara está fazendo papelão no palco e o tiram de lá com uma bengala, como nos desenhos animados.
A arregada de Biden era previsível. O ar de quem parece que não sabe o que está acontecendo ficou patente depois do debate com Donald Trump. O olhar vazio, ausente, a dicção titubeante, as caminhadas incertas a destinos invisíveis. Não que Trump seja muito mais novo: ele tem 78 contra os 81 de Biden. Três anos de diferença entre homens provectos não é lá grande vantagem, mas Trump, até onde se sabe, está com as faculdades mentais intactas, independentemente de tendências e gostos. Bernie Sanders, que foi pré-candidato democrata contra Hillary Clinton e contra o próprio Biden, tem 82, mas parece bem mais lúcido.
O intrigante não é Biden ter ficado gagá primeiro. Coisas da vida. O intrigante é que gente muito velha siga dominando a política e que nomes mais novos sejam deixados de lado; as lideranças não despontam ou ficam no limbo. Os democratas tiraram do bolso Kamala Harris, que não tem os sessenta (é quase adolescente perto desses dinossauros), mas é inócua: parece personagem do Zorra Total.
Não que eu defenda a ascensão dos jovens. Jovem, com exceções expressas, fala e pensa muita baboseira; é melhor que amadureça um pouco antes de chegar arrebentando tudo. Todo jovem é iconoclasta, de uma iconoclastia burra e cega. Mas por onde anda o pessoal entre os quarenta e os sessenta, as lideranças de meia-idade? E esse fenômeno, a falta de renovação, não se limita aos States.
Uma vez, o jornalista Ariel Palacios escreveu que a Argentina era uma necrocracia, ou algo muito próximo disso, porque as eleições eram decididas por quem conseguisse atrair o capital político dos defuntos, que dominavam (e ainda dominam em parte) a vida política nacional. Na época, a referência era a Perón, o morto que nunca morreu, à sua primeira esposa, Evita, cujo cadáver viajou mais que muito arrivista, e até a Raúl Alfonsín, cujo filho, Ricardo, tentou se eleger presidente. O Brasil não sofre disso. Quando se matou, Vargas levou o getulismo consigo, embora muitos tenham tentado desfilar com o cadáver em busca de prestígio, inclusive alguém ora morto que, por sorte, também caiu no olvido: Leonel Brizola. O problema tupiniquim não é a necrocracia que afeta o nosso vizinho transplatino, mas é a mesma questão da política americana: as lideranças envelheceram e não criaram sucessores; o projeto de poder deixou de ser partidário e se tornou pessoal. Ficam no poder, ou no parapoder partidário, como os monarcas ou os ditadores: enquanto tiverem força para dar ordens piscando.