“Em comparação com o mito do Gênesis, o mito secular segundo o qual a humanidade marcha para a liberdade é mera superstição. Como ensina a história do Gênesis, o conhecimento não pode nos salvar de nós mesmos.”
John Gray
O Prêmio Jabuti, tradicionalmente voltado para obras literárias, incluiu, neste ano, a premiação de obras acadêmicas. Marilena Chauí, professora emérita da USP, venceu em duas das vinte e nove categorias do Jabuti Acadêmico. Sua obra Introdução à história da filosofia: patrística venceu nas categorias Filosofia e Divulgação Científica.
Um recorte da apresentação de Chauí, no evento de lançamento do livro premiado, tem circulado nas redes sociais e causado algumas emoções. Ela diz o seguinte:
Uma das coisas mais formidáveis que me deixa muito agoniada é: tomo o Uber, na hora de descer eu digo ‘muito obrigada, boa noite’ e o motorista diz ‘fica com Deus’. Então, eu sei que ele é pentecostalista [sic], que ele é fundamentalista. Eu fico desesperada com essa ideia, de que isso se irradiou por dentro da sociedade, de uma maneira tal que o cristianismo terá quantas metamorfoses forem necessárias para se manter. Vai desde o império romano, do imperador romano, até a igreja pentecostalista [sic] da periferia... Então, não vem dizer que é uma religião, é claro que é uma religião. Mas é uma intervenção deliberada sobre o pensamento, sobre a ação e sobre a afetividade. Então, tem que examinar como é que isso começou, né?
O volume premiado, terceiro da série de introdução à história da filosofia, trata desse exame. Mas, se consideramos somente a apresentação completa da professora no lançamento do livro, é difícil entender a escolha em tratar da patrística. O tom de asco e deboche com que ela trata o cristianismo é bastante perceptível. Apesar de reconhecer a existência de uma filosofia cristã, ela parece relutar em assumir a racionalidade que constitui esse pensamento. Logo no início, afirma que, desta obra sobre a patrística, vai pular direto para o renascimento, onde se encontram os sábios. Com os sábios ela considera que precisa lidar com sabedoria. Aparentemente, pular mil anos de pensamento medieval e ignorar os sábios desse período a fará mais sábia.
Chauí faz questão de enfatizar que não produziu uma obra de apologia à patrística, pois ela é uma “espinozana que não tem complacência nenhuma com o mundo cristão”. Assim, o primeiro passo para compreender a filosofia na patrística, segundo a fala da professora, é se distanciar dos historiadores cristãos. Ela demonstrou um grande temor em transparecer qualquer forma de apreço ao pensamento cristão, mas nenhum receio em ser anacrônica para condená-lo. Afirmou: “Que diabo de religião é essa que é a única que existe? Agora, o islamismo virou isso, mas porque o cristianismo estava lá para atrapalhar o islamismo e criar hábitos no islamismo que ele não tinha”. Complexo.
Ainda que muita gente possa considerar que não é relevante o que Chauí pensa, fala ou escreve, o fato é que seus textos, há muitos anos, são referência obrigatória em muitos cursos superiores e mesmo nas escolas. Para muitos alunos, ela representa praticamente todo o contato que já tiveram na vida com a filosofia. A obra O que é ideologia, por exemplo, é frequentemente referenciada em pesquisas nas licenciaturas, no direito, na administração e outras tantas áreas.