Copo meio cheio ou meio vazio de cirrose?
Morreu ontem o cartunista Jaguar. A imprensa exaltou o fundador do Pasquim dono de um humor corrosivo contra a ditadura.
Só que quase ninguém vai lembrar que ele também ajudou a enterrar vivo Wilson Simonal, um dos maiores cantores e showmans que o Brasil já teve.
Simonal tinha tudo o que incomodava: negro, pobre, confiante e, pra piorar, talentoso ao ponto de comandar 30 mil vozes no Maracanãzinho como se fosse maestro de escola de samba e de filarmônica ao mesmo tempo.
Mas no Brasil, negro talentoso só é tolerado se vier embalado no kit “humilde e agradecido”. Simonal não: dizia que era bom mesmo. E era.
Aliás, esse papo de artista humilde me irrita. Ele pode ser horrível, mas se for humilde e falar de Deus, já é chancela pro sucesso!
Aí veio a confusão com o contador em 1971, o episódio com o DOPS, e pronto: o pretexto perfeito. Nasceu o mito do “dedo-duro”. Nunca houve prova. Nunca houve vítima além do próprio Simonal.
Mas quem precisava de prova quando se tinha Jaguar e Ziraldo desenhando ele no Pasquim dando um tiro na própria cabeça. E o detalhe mais perverso: a plateia do cartum levantava e aplaudia. Ovacionava a sua destruição. O Pasquim, de esquerda, aplaudiu o suicídio simbólico de um homem negro que ousou ser gigante.
E aí entra a ironia histórica: Jaguar foi indenizado pelo governo como perseguido político, com pensão vitalícia de 4 mil reais por mês e mais de 1 milhão em anistia.
Já Simonal, que nunca foi dedo-duro, morreu sem show, sem dinheiro e sem dignidade. Um foi herói da liberdade e o outro, apagado da história.
O maravilhoso documentário Ninguém Sabe o Duro que Dei dirigido por Claudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal, mostra o Jaguar gargalhando ao dizer:
“Simonal morreu de cirrose; podia ter sido eu”.
É, o cara que bebeu a fortuna que ganhou com o Pasquim debochando da miséria de quem foi linchado por uma mentira publicada por este mesmo veículo. Risada gostosa de um branco vendo um preto se fuder.
Esse mesmo documentário, talvez o melhor documentário brasileiro que eu já vi, mostra bem isso: Jaguar e Ziraldo sabiam que Simonal não tinha ligação com a repressão.
E mesmo assim mantiveram a versão, porque afinal de contas, na “luta ideológica”, sempre tem alguém que “leva a pernada”. (Quem assistiu ao doc vai entender a referência.)
A diferença é que, quando a pernada acerta um negro que ousou ser gigante, vira justiça poética.
Em 2012, aos 80 anos, revelou que sofria de cirrose e de câncer no fígado. Wilson Simonal não estava mais vivo pra devolver o deboche.
Agora Jaguar também se foi. A história, que ele tanto rabiscou, olha pra ele e pergunta: será que no além vai finalmente pedir desculpa? Ou vai rir de novo, aquele riso de bêbado profissional, e dizer: “podia ter sido eu”.
Pois é, Jaguar… podia. Mas não foi. Você ficou com a anistia, a grana, os aplausos. E Simonal ficou com o silêncio e o exílio artístico que vocês ajudaram a impor.
Assista ao documentário. É imperdível!
👏🏼👏🏼👏🏼
Viva Simonal!
Que os filhos, Simoninha e Max, saibam colocar os “amigos” ( #sqn ) no lugar justo.
Oscar, muito obrigada por contar essa história, que eu desconhecia, e por reestabelecer a verdade dos fatos.Sempre achei que o que aconteceu com Simonal foi uma grande injustiça, mas agora fiquei mais horrorizada ainda.
Espero que se faça justiça a Wilson Simonal, um dos maiores artistas brasileiros.