#KafkaEOMistério (1)
Nos cem anos da morte do autor tcheco, ainda ficamos impressionados com o enigma que o cerca
Por Rodrigo Duarte Garcia
Em um de seus poemas mais famosos, Eugenio Montale pedia para que dele não esperassem a fórmula do mundo, mas apenas sílabas torcidas e secas como um ramo. São dois versos e uma assombrosa explicação do que deve ser a literatura e, principalmente, do que ela não deve ser. Montale procurava apenas retratar a realidade em colagens e imagens móveis, fugindo da armadilha de tentar conformá-la a esquemas conceituais, o mundo como ideia de que fala Bruno Tolentino.
A existência não pode mesmo ser resolvida e representada em fórmulas matemáticas fechadas a vácuo. A obra de arte ordena a vida – em sílabas torcidas e secas como um ramo – e a impulsiona à frente, com todas as imperfeições inevitáveis da linguagem. A literatura é, assim, essencialmente o resultado da fissura que existe entre as palavras e a realidade, essa brecha inevitável diante de todas as limitações do próprio conhecimento perante a complexidade e o mistério do mundo.
Diante da grandeza da existência e seus dramas intrincados – a solidão, a finitude, o mal, enfim, tudo o que nos define –, o autor é inevitavelmente impelido a tomar partido de uma em duas posições que, a bem da verdade, podem ser resumidas entre o respeito diante do assombro ou uma certa arrogância. Entre a tentativa orgulhosa de aprisionar toda a tensão do real em sistemas abstratos encerrados em si mesmos ou aceitar com prudência o mistério da realidade e a limitação da linguagem para exprimi-lo, renunciando a uma onipotência artística impossível.
É essa, por exemplo, a escolha de Conrad, que sabia ser a missão do escritor a de apenas fazer o leitor ver e sentir a voragem do abismo. Ou a de Manuel Bandeira e suas platitudes: “Se há estrelas no céu, refleti-las./ E se os céus se pejam de nuvens,/ como o rio, as nuvens são água,/ refleti-las também, sem mágoa,/ nas profundidades tranquilas”. E também a de Shakespeare, que levava às últimas consequências a lição de Hamlet à companhia de atores: “anything so overdone is from the purpose of playing, whose end, both at the first and now, was and is, to hold, as 'twere, the mirror up to nature; to show virtue her own feature, scorn her own image, and the very age and body of the time his form and pressure” (Hamlet, ato 3, cena 2, 19-24).
Se ao artista é mesmo exigida uma posição firme frente à realidade que pretende retratar, o verdadeiro criador – de Dante a Bach a Turner – é exatamente aquele que toma o mistério da existência como a sua premissa mais importante. No sublime há sempre algo de misterioso, algo que infunde na alma temor e beatitude. E se – em seu impulso à eternidade – a grande arte busca o belo e o sublime, ela precisa necessariamente conter, ainda que de maneira subjacente, os fundamentos transcendentes do ser.
Por outro lado, a exigência de que se tenha como princípio estético esse assombro perante a realidade de maneira nenhuma equivale à defesa de uma arte estritamente religiosa. O exemplo da pintura holandesa – o insight é de Hegel, na Estética – é bastante esclarecedor, porque, embora a arte flamenga do Século de Ouro estivesse completamente inserida no contexto do calvinismo e o horror à representação de imagens sagradas, ela ainda assim se assentava numa base metafísica. É notável verificar como mesmo aqueles temas profanos – as paisagens, as naturezas-mortas, todas as cenas do quotidiano – estão sempre ancorados em luzes e cores de uma visão de mundo transcendente, nesse profundo respeito pelo mistério da existência, o inesauribile segreto de que falam Ungaretti (“Vi arriva il poeta/ e poi torna alla luce con i suoi canti/ e li disperde/ Di questa poesia / mi resta/ quel nulla/ d’inesauribile segreto”) e o Drummond de Claro Enigma.
Na longa história da literatura, as grandes obras foram sempre construídas sobre esses pilares metafísicos da realidade, mas não muitos autores fizeram do próprio mistério do mundo o seu projeto como de maneira universal fez Franz Kafka. Confrontando a luz da literatura aos cantos mais escuros e insondáveis da natureza humana, ele de fato não apenas tomava os fundamentos transcendentes do mundo como sua premissa estética. Muito além, Kafka fez do mistério o seu tema central. E o resultado, como nos diz Borges, são parábolas sobre a relação moral do indivíduo com Deus e o universo, uma obra feita de fábulas terríveis que retratam em fragmentos toda a existência.