Eis uma daquelas perguntas que, de tão fáceis de responder, merecem uma explanação maior do que o simples: porque sim, caro e pueril leitor.
E ao responder essa questão, também não queremos reinventar a roda. Então vamos quase didaticamente esclarecer - e perdoem o didatismo - porque devemos ler - e reler - Shakespeare.
O mais importante dos motivos: Shakespeare é, sem dúvida alguma, um dos maiores investigadores da condição humana - tanto do individuo, como daquele integrante de uma comunidade ou grupo social. E aqui ressalta-se que para Shakespeare, o primeiro referencial de todas as suas obras é justamente o bem da comunidade. Em Shakespeare descortinamos princípios civilizacionais fundamentais para uma sociedade, princípios estes que deveriam ser parte de nosso entendimento comum.
Shakespeare - com sua imensa galeria de mais de 800 personagens - deixa sempre claro que o homem é responsável por suas ações; que somos capazes de ações boas, mas também de más, somos capazes da inveja e da misericórdia, do rancor e da amizade. Acima de tudo: ao ser responsável por suas ações, os homens também são responsáveis pelas consequências destas ações.
E ao responder essa questão, também não queremos reinventar a roda. Então vamos quase didaticamente esclarecer - e perdoem o didatismo - porque devemos ler - e reler - Shakespeare.
A vastidão de personagens e de temas faz de Shakespeare um autor a quem recorrer quando nos deparamos com estas nossas crises demasiado humanas: sejam as dores de amor, sejam as disputas políticas ou as dissoluções dos tecidos sociais, não há lição - ou conforto - que não encontremos em Shakespeare. Além disso, ele também nos transporta para países e épocas diferentes, revelando virtudes e vícios que são parte permanente, universal, de nossa natureza.
Desde suas primeiras peças - aquelas que se debruçam sobre a história inglesa - vemos nascer o único gênero criado pelo autor inglês: a peça histórica. Aqui não há apenas o narrar dramático de fatos históricos: vemos aqui nascer uma reflexão sobre a natureza do bom e do mau governo. Utilizando-se de trama e personagens, Shakespeare faz nestas obras um verdadeiro tratado político sobre o Poder.
Peças como Henrique IV, Ricardo II, Henrique V, Ricardo III - falam sobre o destino dos tiranos, falam sobre aquilo que molda um bom governante (dica: não é um moralismo tacanho e mesquinho), fala sobre o impacto das guerras no coração e nas almas dos indivíduos e das sociedades. Nestas peças vemos claramente como os vícios e as virtudes de um governante são reflexo e exemplo para seus governados. Ouso cá dizer: querem entender a natureza do Poder? Esqueçam Maquiavel e leiam Shakespeare!
Nas Comédias - especialmente naquelas chamadas de ouro, isto é, Noite de Reis, Como Quiseres, Muito Barulho por Nada, A Megera Domada - Shakespeare irá não apenas nos fazer rir, mas também irá refletir sobre o tecido social que envolve as famílias, as amizades e os amores (ilusórios ou passageiros). Aparência e realidade, ciúmes e desejo, e novamente virtudes e vícios que devem ser superados para que a harmonia social exista. Como maior exemplo da realidade das relações entre homens e mulheres, nada se escreveu ainda que superasse A Megera Domada.
E vale ainda indicar especificamente aqui uma de suas mais importantes comédias, mas que carrega características trágicas que a tornam única: Troilus e Cressida, peça que apresenta um panorama da decomposição moral dos gregos e troianos e também uma das mais incisivas expressões do significado e da importância da ordem e da hierarquia em uma sociedade.
E será em suas tragédias que Shakespeare encontra sua voz maior: nestas peças vemos como o homem enfrenta o mal que sempre existe e o que o mal faz a ele. Seja representado por um inimigo externo e concreto, o mal, em todas as suas obras, está presente também no interior do próprio protagonista, em maior ou menor medida.
Júlio César, Hamlet, Macbeth, Othelo, Rei Lear - personagens que fazem parte não apenas do mundo da arte e da dramaturgia, são personagens que entraram na imensa galeria de nossa humanidade comum, e mesmo o mais ignorante dos homens reconhece em algum grau a si mesmo nestas figuras.
São personagens que escolhem e agem, mas as consequências de suas ações muitas vezes fogem das suas intenções iniciais. Eis aí o trágico. Seja através do assassinato que se disfarça de justiça (Julio César), seja através da vingança que se quer pura (Hamlet), ou do tirano que se enxerga como vítima (Macbeth), seja através da mesquinharia que se quer amável (Rei Lear), ou ainda da hubris que arrota orgulho, esse cadáver putrefato (Othelo), Shakespeare faz destas obras pilares sobre o mal, a justiça, o bem e a ordem. Além claro, de imensa beleza retórica, lírica e estilística.
Por fim falemos de Conto de Inverno, Sonho de uma noite de verão, A Tempestade - obras que abarcam e transcende gêneros narrativos e devem ser colocadas no mais alto patamar da capacidade imaginativa do Homem. Aqui, beira Shakespeare o ato da criação plena - e estas peças são tão ou mais modernas (e não apenas em tema, mas mesmo em recurso narrativo) do que quase tudo que assistimos em nosso viciado e zumbificado consumo de séries e filmes sob demanda.
Se ao longo de suas tramas sempre temos peças dentro de peças a espelhar o mecanismo teatral, nestas três obras temos um autor a refletir sobre sua própria arte, sobre a capacidade desta arte de exprimir aquilo que o coração fala ou conta, a imaginação educada doma sentimentos, desejos, e tem em última instância, o poder de dar/criar a vida. Nestas peças Shakespeare nos fala sobretudo sobre ‘as coisas profundas de Deus’.
Ler Shakespeare é compartilhar da mais rara das visões.
O dionisius está se transformando no ítalo Calvino dos trópicos.Especialista em clássicos. Grande texto.
Ótimo! Só faltou citar "O Mercador de Veneza", tão oportuna em tempos de anti-semitismo exacerbado.