Era uma vez um sujeito que estava saindo de um hospício puxando uma coleira à qual vinha preso um tijolo. O guarda do hospício, ao ver a cena, perguntou:
— Olá amigo, está levando o seu cãozinho para passear?
À pergunta, o sujeito respondeu:
— Claro que não. Por acaso não vê que isso é um tijolo?
Diante da resposta, o guarda imediatamente deu passagem ao rapaz, que seguiu a arrastar o tijolo pela coleira. Já longe do hospício, o sujeito dirigiu-se ao tijolo e disse:
— É isso aí, Totó, enganamos mais um.
Essa chalaça bobinha chama a atenção para a fundamental relação entre a realidade e a linguagem.
Sem que percamos tempo com filosofices, podemos apontar que, sobre a relação entre realidade e linguagem, há duas visões antagônicas de mundo. Uma delas defende que há uma realidade que independe do ser humano e consequentemente da linguagem e que o papel fundamental desta é permitir a comunicação intersubjetiva, principalmente a partir da descrição da realidade. A outra advoga a tese segundo a qual não existe realidade subjacente à linguagem, sendo papel precípuo da linguagem criar a realidade.
Essa segunda visão é, para sermos educados, uma sandice completa; levada às últimas consequências, a adesão a ela implicaria darmos razão ao galo da fábula que crê ser seu canto a causa eficiente do nascer do sol.
Sem a menor intenção de magoar os galos contemporâneos, muitas vezes empoleirados no parlamento, na imprensa, nas grandes empresas e nas cátedras das universidades mais prestigiadas do mundo, sinto-me obrigado a revelar o final da fábula: o sol nasce independentemente do canto do galo. Não é o canto do galo que cria o sol. Porque quando ele for servido no almoço, será à luz do sol que nasceu no dia seguinte ao de sua morte.
A linguagem está a serviço do homem e ela será tão eficiente quanto for sua capacidade de descrever mais precisamente a realidade. Se os intelectuais todos entrarem em consenso no sentido de substituir a palavra buraco pela palavra dinheiro, o destino do cego que caminha resolutamente no sentido do dinheiro não será menos infeliz...
Aquela velhíssima anedota de salão que inaugurou este texto está a correr o risco de perder todo seu efeito cômico, primeiro porque já não há mais hospícios, segundo porque já não há mais loucos e, finalmente, porque daqui a pouco será crime dizer que um tijolo que não late não pode ser cachorro.
Recobremos a razão! Salvemos a anedota.
Obrigado
Que delícia de texto.Que sanidade!