#Literatura: a incontinência do bode(1)
Mario Vargas Llosa deixou uma obra monumental em volume, forma e temas. Foram 21 livros de ficção, 5 peças de teatro, 16 livros de ensaio e um livro de memórias de uma honestidade desconcertante
Parte 1
Jorge Mario Pedro Vargas Llosa, 1º Marquês de Vargas Llosa, falecido em abril deste ano, foi um renomado escritor, político, jornalista, ensaísta e ex-professor universitário peruano. É considerado um dos autores mais significativos da história latino-americana e um dos principais escritores globais. Vargas Llosa ganhou fama internacional na década de 1960 com romances notáveis como A Cidade e os Cães, A Casa Verde e o monumental Conversa na Catedral. Suas obras abrangem vários gêneros, incluindo crítica literária e jornalismo, e seus romances são frequentemente considerados influências em temas políticos e sexuais. Romances renomados como Tia Júlia e o Escrevinhador foram adaptados para o cinema. Em 2010, Vargas Llosa recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, e a Academia celebrou suas habilidades cartográficas em explorar estruturas de poder e oferecer imagens vigorosas de resistência e derrota. Para sorte nossa, o anúncio foi feito no momento em que ele estava no Brasil para apresentar-se no Programa Fronteiras do Pensamento. Com isso, recebeu a devida atenção da mídia e concedeu belas entrevistas. Ele viveu na Europa por muitos anos, e em 2011, foi concedido a ele o título nobre de Marquês na Espanha, uma decisão revelada no início de 2025.
Nasceu em Arequipa em 1936, filho único em uma família de classe média. Seu pai abandonou a mãe antes que ele nascesse, por isso só o conheceu aos dez anos de idade. Ainda na infância, sua mãe mudou-se para Piura, norte do Peru, onde o avô conseguiu um importante cargo político. Apesar das tensões com o Equador, Piura era uma cidade colonial charmosa e importante polo agrícola. Ao mesmo tempo, conservava o clima de cidade pequena, onde todos sabem da vida de todos. Um amigo meu contemporâneo de Vargas Llosa, também natural de Piura, é filho do então único médico da cidade. O médico era o proprietário de um Hupmobile, um dos pouquíssimos automóveis na cidade, que ele só usava em emergências, para atender seus pacientes. Mas emprestava ao padre em emergências do espírito, fossem de alguém que precisasse da extrema unção para salvar sua alma, fosse o próprio padre que precisasse visitar a Casa de Tolerância para salvar sua sanidade. Nesse caso o padre precisava estacionar no beco atrás da casa, longe da vista das beatas, mas essas mulheres insidiosas sempre descobriam tudo. Drama vizinho da comédia com certeza chamou a atenção do pequeno Jorge Mario Pedro (Vargas Llosa). Nasceu a vontade de escrever peças de teatro.
Chegou a escrever algumas, mas entendeu que a estrutura teatral na época em seu país era pobre demais e corria o risco de nunca ver encenda uma de suas criações. Começou a escrever romances, e aos poucos descobriu o universo de possibilidades do gênero. Não deixou barato: trabalhou com disciplina por décadas. Foi um dos romancistas e ensaístas mais importantes de sua geração. Teve um impacto internacional e uma audiência mundial maior do que qualquer outro escritor do boom latino-americano.
Vargas Llosa sempre foi um idealista. Inicialmente foi simpatizante do socialismo e admirador de Fidel Castro e da revolução cubana. A postura de Vargas Llosa começou a mudar após sua visita de uma semana à URSS, em 1966. Ele chegou à conclusão de que, se fosse russo, estaria preso ou exilado. Seu entusiasmo pela Revolução Cubana também mudou, influenciado pela crítica ao escritor cubano José Lezama Lima, que, em 1966, publicou seu romance autobiográfico Paradiso, no qual abordou o conteúdo erótico e homossexual como forma de expressão. Vargas Llosa se distanciou da política da UNEAC (União de Escritores e Artistas de Cuba) e passou a criticar a invasão da Checoslováquia pelos soviéticos e o apoio a ela dado por Fidel Castro. Essa evolução levou Vargas Llosa a escrever um artigo denunciando a operação militar. Posteriormente, Fidel Castro, em um discurso, declarou que Vargas Llosa não mais poderia voltar a Cuba. Vargas Llosa rompeu com Gabriel García Márquez devido à sua amizade íntima com Castro.
A partir deste rompimento, Vargas Llosa passou a defender a democracia capitalista e a combater o regime de Castro. Sua oposição incluiu a defesa da democracia contra aqueles que o acusavam de defender os interesses da burguesia reacionária. Em 1980, ele se tornou uma figura política de destaque em seu próprio país. Em 1987, iniciou um movimento político liberal que se opunha à estatização da economia. Concorreu à presidência do país pela coalizão liberal de direita, na qual foi derrotado por Alberto Fujimori. Decidiu deixar seu país e, em 1993, obteve a cidadania espanhola. Faleceu em Lima, Peru, no dia 13 de abril deste ano, com 89 anos. Foi reconhecido em vida como um dos maiores escritores do século, recebeu dezenas dos prêmios literários de mais prestígio pelo mundo todo, inclusive o Nobel.
Mario Vargas Llosa deixou uma obra monumental em volume, forma e temas. Foram 21 livros de ficção, 5 peças de teatro, 16 livros de ensaio e um livro de memórias de uma honestidade desconcertante. Seu principal tema é a luta pela liberdade individual na realidade opressiva do Peru. Muitos dos seus escritos são autobiográficos, mas A Casa Verde (1966) mostra a influência de William Faulkner. O romance narra a vida das personagens em um bordel, cujo nome dá título ao livro. Seu terceiro romance, Conversa na Catedral, publicado em quatro volumes e que o próprio Vargas Llosa caracterizou como obra completa, narra fases da sociedade peruana sob a ditadura de Odria em 1950. Há um encontro, num botequim chamado “La Catedral”, entre dois personagens: o filho de um ministro e um motorista particular. O romance caracteriza-se por uma sofisticada técnica narrativa, alternando a conversa dos dois e cenas do passado.
Em 1981 publica A guerra do fim do mundo, sobre a Guerra de Canudos, dedicado a Euclides da Cunha, cujo Os sertões Vargas Llosa estudou detalhadamente. Vinte e cinco anos e oito romances mais tarde Vargas Llosa publicou o livro Cartas a um jovem romancista, um guia para jovens escritores a partir das técnicas do romance. Em capítulos na forma de cartas a um jovem ávido por conhecimento da profissão, o autor relata alguns de seus princípios de escrita. Por exemplo, todas as histórias se alimentam da vida de seu criador, como um catópleba, criatura fantástica, descrita por Borges que, inadvertidamente, pode comer partes do próprio corpo. O estilo deve ser coerente com a história contada e dar ao leitor a sensação de viver a obra sem perceber que está lendo. O narrador é o personagem mais importante de todos os romances, pois dele dependem os demais, e, no entanto, ele não deve ser confundido com o autor.
Vários autores latino-americanos sucumbiram à tentação de escrever sobre os nossos ditadores - eles sempre foram caricaturas de si próprios, e para um escritor, transformar uma imagem cômica e dramática em palavras é um desafio irresistível. A maioria deles tentou abstrair a experiência histórica e tratar a contaminação do caciquismo em termos imaginários, como Miguel Angel Asturias com El señor Presidente, Augusto Roa Bastos com Eu, o supremo, Alejo Carpentier com Razões de estado e Gabriel García Márquez com Outono do patriarca, vários inclusive recorrendo ao realismo mágico.
Ambos Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa se fascinaram pelo tema do líder: o revolucionário, o governante, o ditador. García Márquez demonstrava um respeito rancoroso (às vezes nem tanto) pelas causas do poder. Vargas Llosa abordava o autoritarismo de uma maneira diferente, fascinando-se com o retrato do que acontece quando não há discernimento sobre como a vontade de uma pessoa é distorcida pela vergonha, e como a raiva se armazena dentro do ego debilitado para ressurgir na intimidação dos outros.
Vargas Llosa vai além: desce ao nível da rua em comunhão com aqueles que encontra, recria as circunstâncias que favorecem o surgimento de um ditador. Não usa alegoria. Em A festa do bode, sobrea ditadura de Trujillo na República Dominicana, por exemplo, a história é bem concreta, de um realismo que perturba o leitor. Na verdade, segundo o próprio autor, neste romance as cenas de tortura, quase insuportáveis, são menos horrendas do que a realidade do que aconteceu lá, porque se o autor as descrevesse com fidelidade, o leitor não acreditaria que aquilo existe. Ou seja, Vargas Llosa teve de calibrar com precisão a realidade que oferece ao leitor para que não haja uma overdose.
No próximo texto você verá como a República Dominicana foi dominada por um bode durante 30 anos, e nos segmentos seguintes, vamos analisar como Vargas Llosa capturou, em um dos romances mais impactantes do século 20 a essência do ditador que parece brotar periodicamente por estas bandas latino-americanas.
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Que texto. Me emocionei lembrando dele e o que li dele. Abraço
Maravilhoso esse apanhado sobre a obra do genial Vargas Llosa.